domingo, 31 de agosto de 2014

Faz por ti

Faz o Sol por ti antes que arda.
Faz a chuva por ti antes que chores.
Faz a Lua por ti antes do dia.
Faz um sonho por ti antes do pequeno-almoço.
Faz um filho por ti com alguém.
Faz um negócio por ti por dinheiro.
Faz um vestido, não por ti, mas pelo teu corpo.
Faz um caminho por ti antes que te doam as pernas pela falta de uso.
Faz um festival da canção, afasta a mesa da sala, usa uma escova como microfone, faz as canções todas do mundo por ti e as brilhantinas todas do mundo por ti.
Faz uma corrida por alguém e corta por ti a meta.
Corta por ti uma laranja e sorve o sumo por uma pessoa só se tiveres muita sede.
Faz por ti um facho… e alumia quem te segue.
Faz por ti com rigor mesmo rodeado de indolentes.
Faz por ti com calma mesmo assolado por patrões.
Faz por ti a coragem e serás assustador sempre que for preciso.
Faz por ti a sabedoria e saberás sempre que estiveres calado.
Não faças pouco de ti.
Não faças pouco dos outros.
Faz por ti como o dia quando acordas.

Poema de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Isso mesmo

Não posso pensar no que os outros pensam.
Posso então não pensar no que os outros pensam?
Não, porque quando penso em não pensar no que os outros pensam acabo por pensar no que os outros pensam ou no que eu penso que os outros pensam de mim.
Pensar no que os outros pensam de mim sem ouvir os outros deve ser o que acho de mim ou então o que acho que ouvi de mim quando os outros estavam calados.
Os outros são muita gente porque os outros são todos os outros e deve haver outros para todos os gostos. E os gostos deles devem gostar e não gostar de mim, perceber e não me perceber, conhecer-me e não me conhecer.
Os outros que não me conhecem não sabem quem sou mas penso neles como se os conhecesse.
Pensar numa coisa faz a coisa existir e não pensar faz não existir. Se uma coisa não existe passa a existir no passado ou na imaginação e isso dá no mesmo, o mesmo sou, sou sempre eu porque sou muito parecido como quase tudo o que sei.
Sair à rua é um processo passível de apresentar inúmeras conjecturas e dissertações e isso é profundamente… isso é profundamente… isso é profundamente… isso é profundamente uma merda.
A profundidade do que não sei é a mais fútil verdade, a profunda mentira.
A sabedoria de quem não sabe do que fala é a estupidez traduzida para gambuzinos.
Quem não me conhece pode pensar no que sou mas não tem acesso à informação porque o único detentor da informação sobre a minha pessoa sou eu, que sou a única pessoa que pode ser minha.
Pensa de mim o que quiseres, não existe.
Faz de mim o que for, não serei.
Diz de mim o que achares, não me conheces.
Olha para mim como se soubesses, não me vês.
Define-me… não há palavras.
Ilustra-me… sou um livro sem bonecos.
Pinta-me… sou um livro de colorir que passou por todas as mãos do jardim de infância.
Apresenta-me… só eu sei o meu verdadeiro nome.
Marca-me… só eu tenho acesso à minha pele.
Explora-me… sou deserto.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo
                isso mesmo
                isso mesmo
                isso mesmo

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A felicidade é um exercício de constante improvisação

Todos os dias somos pessoas diferentes.

Todos os dias são dias diferentes.

Todos os diferentes são iguais todos os dias.

A felicidade precisa de existir potencialmente de forma diferente mesmo que termine sendo a mesmíssima coisa de ontem.

As coisas que existem hoje exigem uma apropriação e uma adaptação que só o dia de hoje tem.

Por isso, para tudo o que há, tenho eu uma resposta e essa resposta sou eu a respirar o fôlego que tenho. O fôlego que tenho não depende do cansaço que já tive mas das forças que estou a recuperar.

A felicidade é um exercício de improvisação e é tão melhor o exercício quanto mais ou menos caminhos houver. Digo mais ou menos porque, na verdade, não sei bem se são mais ou menos porque a felicidade é uma espécie de eira, uma espécie de limbo, uma espécie de purgatório em bom.

Ser feliz é só uma questão de não saber o caminho antes dar o passo e ter no primeiro passo o caminho certo.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Para lá caminho

Sou culpada de tudo o que sou.
Sou culpada de tudo o que sei.
Sou culpada de tudo o que é.
Sou culpada de tudo o que sinto.
Sou culpada de tudo o que digo.
Sou culpada de tudo o que faço.
Sou culpada de tudo o que penso.
Sou culpada de tudo o que quero.

A culpa é olharem para mim como se a tivesse?
A culpa é falarem comigo como se fosse?
A culpa é dizerem-me o que sou a mais? A menos?
Não, a culpa é deixar!
A única culpa que tenho é deixar!
Deixo que mudem o que aconteceu.
Deixo que inventem o que nunca foi.
Deixo que partam o que estava intacto.
Deixo que destruam o que é eterno.
Deixo que deturpem o que estava certo.

Eu vou, a partir de agora, inventar a verdade.
Vou, na verdade, saber o que fiz.
Vou, na verdade, saber que fiz bem porque foi o melhor que consegui.
Vou, na verdade, saber que a culpa só existe para quem a sabe como uma certeza.

Eu sou boa pessoa porque não bato, não mato, não roubo, não humilho, não castigo, não insulto, não nada.
Tudo o que sou é dar o que tenho, fazer o que posso, dar-me a quem quero, viver com quem me devolve o ar que respiro.
Eu sou boa como quem pode sair andando por qualquer rua sabendo que, se quiser, ninguém inventará curvas ou becos para mim, porque para a verdade não tem nada que saber… é sempre em frente. Seguir em frente quando há estradas estranhas onde virar é dizer a quem espera nelas que sei o caminho de cor como tudo onde fui.
A verdade é continuar até parar quando quiser num sítio onde está quem me dá razão, quem acredita em mim e quem tem a certeza que não fui eu que fiz por mal porque o mal já existia antes de mim, não fui eu que o inventei.
O bem também já existia antes de mim, mas tenho andado a praticá-lo e a fazer melhorias nele e estou a pensar registar a patente de tudo o que inventei de bom.
Farei coisas boas até sempre. Sou culpada dessas. Das outras não, as outras deixo para quem acha que as fiz.

Com a certeza de que a verdade é minha calco mil desculpas e sei que não sou perfeita mas… para lá caminho.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A Máquina


No corpo está a razão.
No outro dia enganei-me a fazer uma coisa no computador e um amigo disse-me: “A máquina tem sempre razão”.
Depois pensei no meu corpo que também é uma máquina e percebi que ele também tem direito a ter razão.
No corpo está tudo, até a mente.
Quando sinto frio, tapo-me.
Quando há calor, destapo-me.
Quando choro é por alguma coisa.
Quando rio é por algo também.
Se quiser rir depois tenho que fazer o que me fez rir antes.
Tenho que fazer o que me faz se o quiser fazer mais vezes.
O que funciona para o meu corpo é o que funciona para mim.
Ouço-o todos os dias. Tenho ouvidos especiais que ouvem para dentro também.
Tenho olhos que dão a volta até verem o que se passa no dentro de mim.
Tenho dedos que me apalpam por dentro da pele.
E atado ao nariz por uma trela que vai muito longe tenho um perdigueiro que vai por mim até ao que for preciso.
E sabe-me tão bem.
Sabe-me tão bem.
Sei tudo tão bem.
Ando sentido comigo mas não sofro porque há sinais nítidos por mim que me avisam do que está mal e me avisam quando é bom.
De hoje até ao fim dos meus dias darei razão à máquina.
Eu sou a máquina. Eu sou só o meu corpo porque ele diz-me o que estou destinado a ser. 

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros 

domingo, 17 de agosto de 2014

a invenção da dor

é suposto amar-se muita gente como a nós

mas se não gostarmos do que nos vai dentro não amaremos gente por fora

porque não o distinguiremos do marulhar das folhas no vento que sabe à maresia que esteve nos ouvidos do afogado mais fundo

urge termos por nós a certeza do afecto

para que transborde pelos poros que a natureza nos deu a vontade de submergir a terra de um ar novo e simples que mostre às gentes novas cartilhas com orelhas no canto das folhas porque foi precisa a nossa saliva para virar a página que tinha a dor escrita numa nota de rodapé com letra pequenina

sabemos a dimensão que nos acrescenta

mas hesitamos na procura do sonho porque achamos incoerente voar sobre as cidades de pijama

mas é a acreditar neles como reais que os tornamos reais

é a acreditar neles como nossos que os tornamos nossos

é a acreditar neles aqui que os temos em nossa casa

na nossa cama

e os nossos lençóis sabem a história do mundo desde o princípio

como se a baba do travesseiro lhes tivesse contado os males de amor de um curandeiro do paleolítico que a História não guardou porque não acabou bem

levemos connosco ao colo os pensamentos que tivemos há muito em horas de aperto

vamos dar às nossas lutas interiores a beleza dos universos pacíficos

que nos dão paisagens ao corpo e ventos à pele que sabe as curvas da carne

por ser a amizade mais próxima que o mundo tem o nosso corpo ama-se entre si como o irmão que temos mas que partiu cedo demais

vamos entender o que somos como o que somos se entende em si

a pele tapa a carne

a carne tapa o osso

o osso sustenta tudo

e os órgãos sabem as conversas que teriam se falassem como amantes antes da cópula

larga a dor que inventaste

fica só com a que inventaram para ti

poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Tudo de bom

As coisas que acontecem acontecem sempre instantaneamente.
As coisas que nos fazem acontecer acontecem sempre instantaneamente.
As grandes mudanças são instantâneas como as diferenças.
Agradeço à mudança que me faz melhor porque a mudança que me faz melhor é a única que quero.
Quero mudar para melhor e quero só quem me muda para melhor.
Há pessoas com o dom de mudar e sou uma delas.
Mudo todos os dias muito porque tenho a necessidade de mudar muito, não por estar mal, mas por querer estar bem porque bem é melhor.
Quero agradecer a mim próprio por melhorar todos os dias e a todos os que me melhoraram. Estou viciado em evoluir. Acho que na semana passada era uma ameba e esta semana sou incrível e tenho células infinitas de contar. Para a semana que vem, vou-me achar uma ameba esta semana, e assim sucessivamente até ser o melhor que puder.
Todos nós temos a obrigação de sermos o melhor possível porque o melhor possível é o mínimo que podemos.
Agradeço a todos os que estiveram comigo na semana passada e que me fizeram ser o que sou nesta.
A verdade é que pode não ter passado uma semana, a verdade é que pode ter passado um dia ou um segundo ou um instante tão pequeno que por pouco não era inventado.
Para crescer não é preciso tempo, só é preciso perceber, querer muito e escolher a companhia certa.
És a minha companheira. Obrigado por seres a minha companhia, a minha companheira, a minha alma gémea falsa que só é igual bem lá dentro.
As únicas pessoas que nos querem bem são as que nos põem melhor.
Juntem-se já a quem vos faz bem sem querer, porque essas são as mesmas que vos fazem bem por querer.
Juntem-se siameses a quem vos constrói. Acrescentemos anexos até fazer de uma cabana um palacete e de um palacete o espaço todo que há, como um tecto para o mundo todo, um tecto por onde passe o Sol, a brisa e a chuva e o tudo de bom.
Tu és o tudo de bom porque me ensinas só que eu já sabia tudo. O homem, quando nasce, sabe tudo e compreende tudo. Isto de viver é só uma maneira de relembrar o que somos. E cada momento é um segundo de uma vida passada onde fomos extraordinários.

Estamos condenados à maravilha e acreditar nisso é o mesmo que respirar.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Texto de "O Manual da Felicidade"

A minha mãe deixou de falar para mim.
A minha irmã deixou de falar para mim.
O meu irmão deixou de falar para mim. Já não me liga há três semanas. Não respondeu à mensagem que lhe mandei quinta-feira. Não atendeu, liguei de novo e foi para o voice mail. Não consegui falar para o voice mail.
Estamos zangados, eu e a mulher, não falamos há uma semana. Só coisas pequeninas: “não te esqueças de deixar os papéis na casa da tua mãe que ela precisa disso por causa do IRS”. Mais que isso não dissemos. Nem sozinho fala comigo.
Este silêncio, este silêncio, este sono, este sono lento.
Andam todos sem falar há tanto tempo. Calem-se todos já, porra. Calem-se todos de uma vez. Calem-se! Calem-se! Por dentro estão todos aos gritos. Por dentro insultam-se e olham e dão porrada até matar. Por dentro quem não fala por estar zangado tem o pior dom da palavra.
O silêncio é de ouro. O silêncio é de ouro?! Vou pôr o meu silêncio todo numa loja de penhores e vou comprar uma motorizada, uma boss casal que faça rir quando passa. Vou vender o meu silêncio todo numa daquelas lojas, que agora há muitas, ouro certo, ouro puro, ouro é bom, troca aqui o ouro, ouro qualquer coisa.
Não gosto de estar calado quando tenho coisas para dizer por isso, a partir de hoje, sempre que me apetecer falar falo. E quando vir alguém que quer falar e não consegue, digo uma piada ou peço-lhe que fale comigo ou então que vá fazer silêncio para outro lado que os meus ouvidos não aguentam mais.
Mãe, fala comigo e se não falares falo eu. Imito a tua voz até teres saudades dela e eu deixar de ter.
Mana, diz qualquer coisa parva que eu rio-me só para provar que te ouço e que te amo.
Mano, ouve e responde como se faz nas conversas.
E a quem não me liga dou o saldo que me resta… E se não responder à mensagem levo-lhe um pombo-correio nas mãos até à porta de casa. E se a casa me mandar para o voice mail vou ter com ele ao trabalho e faço uma cena. E se a segurança me acompanhar para fora do edifício, combino uma noite de copos com eles e cantamos juntos os “Resistência” e a “Dulce Pontes”. E se a mulher estiver muda, faço-lhe cócegas. E se o homem estiver calado, dispo-me para ele até que diga coisas porcas que quero ouvir. E se só falar do IRS e do seguro do carro eu falo do IRS, do seguro do carro e da novela só para falar de uma coisa mais bonita que o IRS e o seguro do carro. E quando tiver coisas para dizer, digo a mim sozinho para me ouvir. Gosto de me ouvir. Gosto de ouvir quem gosto. E mato os silêncios constrangedores à dentada, à paulada e à gargalhada… e não as mando dizer por ninguém porque a minha voz é uma dádiva, um dom e uma delícia exóticas.
Anda, amigo… fala, comigo.
Anda, amor, fala comigo.
Anda, fala.
Se tens para dizer, fala.
O silêncio quando é tenso e contrariado só pode melhorar com palavras. As tuas palavras, as minhas palavras. Não precisas de as escolher, só precisas de as querer dizer. Quando o silêncio é demais temos coisas a pensar que não devíamos que nos calam o que temos de bom.
Diz só o que tens de bom e guarda o silêncio para ti. Quebra o silêncio de todos até que não haja dúvidas. O amor da voz é dos mais eficazes.
Fala comigo agora que vou calar-me. Fala, calei-me. Fala tu, fala tu. A tua voz é a coisa mais linda e o que vais dizer é o mais importante.

Diz! Diz já, que depois pode ser tarde.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Texto de "O Manual da Felicidade"

Não suporto quem não precisa de mim.
Deixa-me louca quem não precisa de mim. Preciso tanto de pessoas que precisam de mim.
Eu quero dar-me mas há tão pouca gente no mundo que me sabe receber.
Não quero nada. Só obrigado, beijinhos, prendas pequenas com postal nos anos, flores quando me morrer alguém e guizos quando me nascer.
Irrita-me esta necessidade de dar mesmo quando não me querem. Ponho-me a jeito. Tiram-me o tapete. Fico exposta.
Detesto quem me diz:
- Deixa estar, não é preciso.
- Estou bem, obrigada.
- Não te incomodes.
Mas eu incomodo-me. Eu adoro incomodar-me. Eu sou incómoda por natureza. Eu quero fazer empadas, e queijadas, e levar-te ao hospital, e dar-te sal e óleo quando te faltar. Por favor, pede-me para te ficar com o cão nas férias que eu ensino-lhe truques.
Deixa-me ser generosa. Tenta ser egoísta por mim. Anda lá, fá-lo por mim.
É um desespero isto da generosidade, dou em louca com isto da generosidade.
Gostava de ter talento para ser enjoada e enigmática mas não tenho jeito para isso. Sou dada, desbocada, oferecida, assumida, sem vergonha, sem medo, sem mentiras.
Dou-me a quem quero quando me apetece mas, a partir de hoje, quando vir quem não me quiser… a partir de hoje, quando estiver perante quem não precisa de mim… a partir de hoje, quando estiver mesmo à frente de quem acha que estou a mais, dou-me só a mim própria.
Faço as empadas e como-as eu. Faço as queijadas e como-as eu. Adopto um cão pequenino no canil, e nem vou ao hospital porque sou sã e fico a ver o Natal dos Hospitais a beber chá de cidreira. E o sal mete-o no pão que não o tiver e com o óleo que me sobrar troco o do meu carro que deve estar a precisar, que o meu pai já me avisou na quinta-feira.
Eu sou dada e desbocada e oferecida a quem amo e me quer.
Para quem não me quiser cozinho para mim, falo sozinha e solto uma gargalhada de uma piada que disse e que ninguém percebeu.
Quando quem me quer não está dou-me bem sozinha.
Quando quem me quer não estiver dar-me-ei bem sozinha.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

domingo, 10 de agosto de 2014

Sabes-me bem

Ontem um rissol de camarão deu-me um abraço sentido e no fim ofereceu-se para me levar a casa porque eu estava indisposta.
Quando cheguei, uma mousse de manga enviou-me uma sms a dizer que tinha muito orgulho em ter uma amiga como eu.
Acordei a meio da noite e não conseguia dormir e uma tablete de chocolate branco fez-me um chá de camomila, depois sentou os quadrados na cadeira em frente e falou-me da família e até combinámos de ir ao cinema.
Um pudim de ovos levou-me o carro à revisão. Uma embalagem inteira de torrão de alicante convidou-me para ir de fim-de-semana. Eu e o torrão de alicante fomos a Benidorm, por lá encontrámos uma piza familiar e o corredor das bolachas do Pingo Doce que ia numa viagem de final de curso.
Eu não tenho amigos, nem tenho família. Basta-me o afecto da comida que me faz mal.
Quando o meu pai liga atendo enjoada porque comi no bufete um croquete, e uma chamuça e um refrigerante.
Traí o meu marido com um pastel qualquer.
Abandonei os meus amigos, tínhamos combinado fazer coisas importantes mas fui fazer uma sobremesa. Fiquei tão carente de deixar os amigos longe que abracei a sobremesa até cair da mesa abaixo e vomitar o chão da cozinha todo até patinar.
Que é isto? O que é isto?
Porra, o que é isto? Eu não posso ser isto.
Eu sou mais do que isto! Eu sou muito mais do que isto! Eu sou outra coisa!
Eu sou aquilo. Eu tenho paixão pela comida que me faz má, gorda, doente e às manchas e não tenho pelo que devo?
Não tenho a quem devo?
Não tenho a quem devo?
Mas que merda é esta?
A partir deste momento tudo o que me faz mal passa também a saber-me mal.
A partir deste segundo tudo o que fizer mal ao meu corpo será rejeitado por mim que sou guardiã do que sou e do que quero ser.
O afecto que tinha pela gula e a gula que tinha pelo afecto vou dá-la toda, vou dá-la toda às pessoas que me fazem bem e às coisas que quero fazer.
Aprendi e ensinaram-me a gostar do que me fazia mal. Aprendi a gostar à conta disso. Só me falta gostar do que preciso. E preciso mesmo é de ti. Preciso de ti que és uma pessoa e me dás amor em troca de carinhos.
Sei que depois disto um gangue de sobremesas me esperará com correntes e pés de cabra mas não tem mal… eu sou corajosa.
Sei que depois disto um exército de fast-food far-me-á uma perseguição em plena auto-estrada mas não tem mal… eu sou corajosa.
Sei que depois disto receberei telefonemas anónimos ameaçadores a meio da noite feitos por um chocolate de culinária raivoso mas não tem mal… eu sou corajosa.
A verdade é que não preciso de açúcar a mais,
                sou doce.
A verdade é que sou espirituosa,
                não preciso de sal.
Vou pegar no conforto que sinto quando como,
vou pegar na paixão que sinto quando quero comer,
vou pegar na vontade que tenho quando mastigo e entregarei tudo a quem me faz bem à saúde.

Sabes… sabes… sabes-me… bem.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

o amoral da história


o suor do lavrador faz brotar semente
a semente do lavrador faz brotar suor
na goma da camisa está a importância da cerimónia
na graça da criança está a desculpa para o adulto
a raiva acumulada dá o álibi ao pretexto
perder a razão é comum em momentos de crise
saber estar é circunstancial
viver bem despoleta invejas
voltemos atrás            vivamos mal ou finjamos viver mal
estar fora da realidade é a solução para quando a realidade não serve
o que nos serve de lição pode ficar curto nas mangas a outro
um companheiro deve ser um amigo ou pelo menos não ser um inimigo
a verdade é a nossa
ao longo da vida existem momentos em que escolhemos e outros que escolhem para nós
criar é um privilégio
criar é um dever
criar é uma obrigação
criar é
criar pode ser
criar          às vezes        não é uma característica
dar mérito a quem não o tem é perigoso
dar mérito a quem o tem é difícil
saber o nosso lugar é uma fonte de consumições
não ter lugar pode ser a liberdade
não ter onde ficar é desconfortável
viver na escuridão faz mal aos olhos
olhar para o sol directamente também
roubar é errado
roubar está errado
a gravidade de um roubo depende do que roubamos
de a quem roubamos
de quando roubamos
de como roubamos
de porque roubamos
de se hesitamos antes e se dormimos bem depois
da falta que faz o que foi roubado a quem foi roubado
e da falta que vai fazer a quem rouba
a circunstância de passar a fazer parte do conjunto de pessoas que já roubaram poderá
[ser também factor de adversidade ou não
a inteligência não anda de mãos dadas com o sucesso para não cair
todos temos um objectivo
uns sabem-no
outros não
há gente que descobre quando já é tarde demais
há gente que sabe que já é tarde demais quando descobre
há gente que sabe mas que não quer descobrir
e há gente que descobre mas que não quer saber
levar um dia de cada vez pode criar-nos dificuldades em fazer planos para o fim-de-semana
estar sempre de pé atrás pode obrigar-nos a coxear
se formos cruéis para os nossos semelhantes os nossos semelhantes serão iguais
se tivermos vergonha das nossas origens vamos ter menos anos de vida
a comunicação é muito importante
falar é importante
falar é mais importante do que falar alto
falar é mais importante do que falar baixo
tocar é muito mais importante do que falar
correr sem sentido às vezes é tão útil como saber para onde se corre sempre
começar bem um projecto ou viagem é melhor que um mau começo mas quase
                                                                          [tudo está acometido de reversibilidade
e quase nada está acometido de irreversibilidade
estar atento ao que se passa é muito útil mas pode dar-nos demasiada
                                                                         [consciência da nossa impotência
estar apenas atento faz-nos
amorfos
apolíticos
amorais
amáveis
o estado de atenção deverá ser alimentado por uma constante e genuína vontade de intervir
essa vontade de intervir deverá ser secundada pela intervenção em si
quem quiser viver mais tempo deve evitar confusões
quem quiser viver deve meter-se nelas
fazer o que nos mandam é mau
fazer o que nos pedem pode ser bom
quem só manda é mau
quem só pede quer ser mas não consegue
os desafios servem para falhar
os desafios servem para conseguir
a coragem mede-se com uma régua imaginária que só existe quando o coração bate forte
a boca fica seca e sentimos o desmaio eminente
os heróis são homens
as guerras servem para vender armas a santos
a simplicidade é difícil de atingir só porque ninguém é simples
ninguém quer ser simples
as crianças fazem de conta que não sabem para que os pais se sintam melhor
para que os pais sintam melhor
para que os pais se sintam melhores
os significados são exclusivos de quem os compreende
as relações entre pessoas são a causa principal de grande parte das coisas boas
as relações entre pessoas são a causa principal de grande parte das coisas más
o amor não é uma invenção
se o amor fosse uma invenção funcionava
as histórias não deveriam ter moral
as histórias deveriam ter mensagem
esta história não é uma história
o fim obriga-nos sempre a parar

poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros