quinta-feira, 26 de julho de 2012

o órfão de segunda vez


a senhora que mora na casa em frente nem sempre está à janela
às vezes está à porta          e outras está dentro dela

a velhota que vive junto a minha casa
tem um cão chamado Teobaldo
que com latidos me arrasa
enquanto a velha faz o caldo

e ouço-lhe a máquina de costura
sinto-lhe o ponto de caramelo
quando lhe dá para a doçura
leva à rua o xaile mais belo

e mora sempre sozinha
a única visita sou eu
que a espreito como se fosse minha
até que ela se derreteu

e a casa está para alugar
porque a cortina já não se mexe
mas quando à janela voltar
vou-lhe dizer          por favor desce

indago-lhe porque some
não faça isso          então e eu?
depois pergunto-lhe o nome
e ela responde que morreu

podias ter sido minha avó
ó minha querida avozinha
eu moinho e tu a mó
a que me dava a farinha

e eu não gosto do cão
só o tolero por ser órfão

e a casa que fica em frente à tua
não é uma casa e está nua

e a família que estava comigo
nunca chegou a aparecer
deixa-me ser teu amigo
e o caramelo derreter

é que a senhora que vive ali não está sempre lá
mas eu juro que já a vi nos dias em que não está

poema do livro "luto lento" de João Negreiros


quarta-feira, 4 de julho de 2012

a família


Poema inédito de João Negreiros.
Realização - Tiago Ferreira Marques; Interpretação - Cátia Cunha e Silva
Co-produção de Teatro Universitário do Minho e Bolor Teatro

a família

amamos os pais mais quando morrem
amamos os pais mais porque foram o que nós repetimos um pouco
amamos os pais mais na fuga para a frente
os pais são-no na retaguarda
o pai que se substitui ao filho é um filho
amamos o tio mais pelo que nunca poderá sentir por nossa mãe
amamos os irmãos mais pelo que poderíamos ter sido
amamos um primo mais por não ser o irmão e queríamos que fosse por não ser
amamos mais os presentes de Natal que pedimos enquanto esperávamos por outros
amamos mais os anos bons dos álbuns que inventaram para substituir memórias

sou um cacto da cidade
seco porque me regam
percebo os sinais do medo
sou o que esperavam de mim quando me pedem
dou-lhes partes complicadas por pudor de me perceberem
acabei mesmo há duas horas de fritar um panado
também comi uns ovos
não fiz arroz nem massa
lambi o pacote que ia a meio das batatas fritas
estavam moles
velhas
e já vinham frias à nascença
a cozinha cheira mal
não tomo banho há três dias
vou dizer que o meu cabelo tem tendência para ser oleoso
há mais papéis aqui do que era preciso
morreu um pássaro na varanda
se não recebesse tanta publicidade a vida seria melhor
acordei depois do sol porque dormi atrasado
dói-me tudo
acho que ainda há chocolates do Natal
fico contente por este ano não me terem dado dos de licor
odeio os de licor
quando era miúdo quase vomitei com um
senti que tinham inventado um veneno só para mim
mas depois a minha tia comeu o que sobrou do que quase vomitei e percebi que era mesmo assim
tenho uma tempestade para acalmar
a minha miúda tem medo de trovões e por isso nunca esteve
há lixo a mais hoje
estão para chegar
vou entrar em pânico por cinco minutos e depois descanso
vou aos sovacos com desodorizante e às partes com perfume
o bidé está muito frio
o lavatório é lá longe e chove
a banheira ia molhar-me todo
vai ter mesmo de ser assim
chuto para debaixo da cama tudo até caber
quando cabe é porque não cabe
abro as janelas
estava quase para cegar mas arrependi-me porque não havia luz lá fora
vou pôr a televisão mais longe da cama para ninguém ver que estou míope
hei-de morrer sem óculos e com o cabelo todo para adiar o que puder na mente de todos
se ao menos esta louça fosse de papel
se ao menos tivesse comido da sertã a escorrer
se ao menos o bolor do frigorífico fizesse algumas concessões
luto contra tudo o que tenho contra mim e estou a perder
amamos os que amamos mais por obrigação
hoje ficaram de vir
a casa cheira a mijo
ainda bem que não consigo ter um cão
vou vestir a roupa por cima do pijama
se ao menos o aquecedor estivesse por dentro da roupa
há um jantar de família à minha espera
devia descongelar qualquer coisa por caridade mas as pegas são só para o fogão
amo-os tanto e não sei dar-lhes de comer
não tenho nada no frigorífico que não os mate num ápice
há coisas para escorregar por todo o lado
vou ficar sem família e dar meu corpo para adopção
a campainha tocou
dispo-me
eles merecem que me dispa
com a vontade de chorar não lhes digo que esperem
dispo-me mais
dispo-me mais ainda
líquido no chuveiro
eles merecem
estou a morrer com esta chuva
não há gel de banho
vou à deriva ao outro lado buscar o sabonete do bidé
volto
eles merecem
amo-os porque merecem
tenho a família à espera
lavo-me
tenho a família à espera
seco-me
tenho a família à espera
visto-me
tenho a família à espera
calço-me
tenho a família à espera
tenho a família à espera
tenho a família à espera
chego à porta
abro a porta
fecho a porta
já não estão

poema do livro "o acaso é um milagre"  de João Negreiros