segunda-feira, 27 de julho de 2009

o búfalo que sopra





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o búfalo que sopra
eu sou o grande búfalo solitário que sopra para mudar a pradaria
e dou         sem esforço         razão         às criaturas da terra         de viver
vivo para além do que está certo e ao lado do que está errado no centro da verdade
que foi criada por mim num ritual ancião feito por cegos
surdos
mudos
loucos
mortos
para que não sobrassem testemunhas
sou o grande búfalo solitário
o único sabedor da verdade
e vivo todos os dias um pouco para contar um pouco dela a todos vós
os crentes da mentira
profetas da mentira
escravos da mentira
sou o grande búfalo solitário que faz uma bossa cornuda com chifres na planície que o homem povoou de edifícios altos como o Deus nos acuda
sou o grande búfalo solitário
o vigia que estava cá antes e que nunca fica para depois
tenho mais o que fazer
tenho que fazer mais
tenho que te fazer mais
a ti que só acreditas na tua sombra nos dias em que a noitinha se atrasa e quando as nuvens não aconchegam o azul
eu nasci para vos nascer
cresci para vos crescer
morri para vos morrer
respiro ofegando fazendo a brisa que navega pela outra margem até esta
fazendo a ponte dos ventos que lavam a cara às lavadeiras para que levem a roupa suja e os rostos molhados
sou o grande búfalo solitário
o que ignora as próprias dores porque vive só com as dos outros
e cavalgo sem cavalo
e marro sem ser boi
e penso ruminando que o meu papel é viver para além da minha e da vossa chama
sou o grande búfalo solitário
não como o que me dão
mas o que a natureza me dá
e a minha natureza é esta
e a minha missão é uma
viver na ignorância dos outros com a minha sabedoria
agarrar o passado
mascá-lo como tabaco
e lançar-me à desfilada num atropelo mortal com os cornos contra o futuro que vai ser meu
o futuro vai ser meu
e os meus cornos abrem uma brecha no destino         mudando a paisagem
e os meus cornos abrem uma brecha no destino         mudando a História
e os meus cornos abrem uma brecha no destino         mudando o homem
o vento levanta-se do sono mais pesado
urge tempestade nos olhos
eu sou o grande búfalo solitário que sopra para mudar a pradaria
eu sou o grande búfalo solitário que sopra para mudar a pradaria
in "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O Teatro Universitário apresenta


Espectáculo e percurso antológico da poesia de João Negreiros, que tem como objectivo traçar uma rota que vai desde as suas tendências Neo-Surrealistas até à lírica mais conceptual e sonora.
A interpretação dos diseurs visa ser oral, naturalista e inovadora, tornando a literatura mais óbvia, mais universal e mais acessível.
É um espectáculo de emoções extremas e dos sentimentos mais íntimos e guarda os momentos mais carinhosos que só se partilham com os amantes, amigos e o público.
Vítor Arezes

Dose da fatia de um doce

Dá-me um bocadinho do teu amor        todos os dias
Não mo dês todo hoje         que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei         conheço-me bem
e nesse aspecto         sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho         para que o teu amor me
                        [dure até ao fim da vida



in "o cheiro da sombra das flores" de João Negreiros




Ficha técnica
Direcção artística: João Negreiros
Diseurs: Ana Catarina Miranda, Andreia Dantas, Catarina Rocha, Dina Costa e Eduarda Freitas
Sonoplastia:João Negreiros
Selecção de textos: Ana Catarina Miranda, Andreia Dantas, Catarina Rocha, Dina Costa, Eduarda Freitas
Operação de luz e som: Vítor Arezes e Agostinho Silva

Agradecimentos: Junta de Freguesia da Sé de Braga, transportes Urbanos de Braga

De 21 a 25 de Julho, às 21h30.

Local: Auditório do T.U.M., Rua do Farto, Braga (junto às Frigideiras da Sé).
Reservas: 965530263; teatrum@gmail.com

segunda-feira, 13 de julho de 2009

grandes poemas para viagens pequenas

Nos Transportes Urbanos de Braga, este mês, pode-se ler :


tu messias mais


se ninguém te quiser ouvir grita

escala um arranha-céus e diz tudo

até que as entranhas se esvaiam em acordeões

até que sejas impossível de ignorar

e se te baterem bate a mais portas

e se te baterem mais usa a testa como aríete e entra-lhes nos pensamentos

tu sabes que tens razão

tu tens sempre razão

tu vais salvar toda a gente de si própria

tu sabes o segredo que lhes vai mudar as vidas

tu és o sopro que lhes falta quando assobiam

o som da trombeta

o guizo do chapéu

o rasgo do papel

o mago da magia

o marco do correio

o pico do cume

a água do dromedário

tu vieste para ajudar

tu só queres ajudar

então porque não te deixam?

porque não te sopram carinho ao ouvido e te chamam nomes feios que tu sabes não serem da tua família nem da afastada

a sociedade também foi feita para ti

um bocadinho foi

um buraquinho foi

porque não te deixam entrar lá?

porque não te deixam estar lá?

querem-te à chuva e ao frio

sem amigos

sem calor

sem pão

sem sal

não te dão nem um naco da tua própria carne

nem a luz do teu quarto

nem o silêncio da tua mente

e tu aceitas?

e tu ficas-te?

e tu não protestas?

seu banana

seu falhado

seu funcionário sem sindicato

sua mulherzinha que nunca votou

sua criancinha que limpa o prato

seu homossexual não assumido

seu cão sem pulgas

seu cabrão sem cornos

seu tronco sem pau

seu pau mandado

seu arado sem terra

seu dinossauro radioactivo sem cidade japonesa

seu lamparina sem petróleo que foi inundar uma gaivota

seu cabeça sem capacho

seu diamante

seu bruto

seu papa-açorda

seu caramelo

seu lambe-cus

seu

seu

seu

seu és tu

seu és tu ouviste

seu é contigo

seu é para ti acorda

já é noite

já foi dia

amanhã vai ser tudo isso outra vez e tu estás ao relento

não tens onde ficar

não tens lugar na terra e ninguém to vai dar se não esgravatares

procura

pede

come

ataca

implora

arrasta-te

resvala

escorrega

assusta-os

ignora-os

tu sabes que tens razão

e a tua razão é respirar

se respiras tens direito à vida

se tens direito à vida tens direito a chorar

se tens direito a chorar tens direito a voz

se tens direito a voz tens direito a que te ouçam

se tens direito a que te ouçam tens direito a dizer algo que lhes mude as vidas

se tens direito a dizer algo a que lhes mude as vidas tens direito a mudar também a tua

não peças respeito

nasce respeitado

não implores por dignidade

apregoa a dignificação do Homem

não mendigues comida

acaba com a fome

não protejas os teus filhos

protege todos os filhos

não procures uma religião

faz o que um Deus bom faria

não ouças tudo o que te dizem

ouve todos os que falam

tens direito ao teu canto

e o teu canto é o de mudar tudo

tu podes mudar tudo

tu deves mudar tudo

tu sabes mudar tudo

repara nas pessoas e muda-as para melhor se elas quiserem

aproveita para ires melhorando também

dá-te como se fosses de borla

não peças nada em troca mas dá com um sorriso mais rasgado a quem te der um beijo no fim

não tenhas medo que te interpretem mal

aliás não tenhas medo que te interpretem

aliás não tenhas medo

guarda o melhor para os outros e o pior para ti

mas não sejas cruel contigo que és o único que tens

tens que ter noção do teu papel

e o teu papel é duro como se embrulhasse pregos ou cacos que não queremos nas mãos do senhor da recolha nem nos dentes do gato vadio

o que tu vais fazer agora porque é o único tempo que te pertence é mudar

mudar até que nada fica igual

até que esteja mesmo do agrado de todos

mas se por acaso no meio do teu percurso de conflito e mudança

no meio da tua jornada de luta pelo bem encontrares algo de profundamente belo

não lhe mexas

não lhe toques

pega numa cadeira de praia monta-a e senta-te calmamente a apreciar



João Negreiros,
in "a verdade dói e pode estar errada"

sábado, 4 de julho de 2009

João Negreiros vence prémio internacional de Poesia e recebe bolsa de criação literária

Mais uma vez a poesia de João Negreiros é reconhecida no estrangeiro e o poeta português será, inclusivamente, editado no Brasil.

João Negreiros já havia sido publicado na Antologia de Poesia da ASES, mas desta vez será publicado numa colectânea do Selo OFF FLIP em 2010.

Na sua quarta edição, o Prémio OFF FLIP teve a participação de 393 poetas.

Os textos foram avaliados por escritores de expressão no cenário literário brasileiro.

A entrega do Prémio acontece no dia 4 de Julho.


saliva

quimera da larva sussurrante

sedosa maravilha do vestido

serpente louca do varal que dá cheiro de gente à roupa lavada


nómada feita à mão pelo artesão do tempo

conjuga os anos que me faltam

e dá-me uma velhice rápida depois da infância de sempre


minha alma grande

ó minha alma grande que dás dente aos ursos


sinestesia da cor da raiva

mostra ao céu a tua cor para que ele raie de vermelho no reflexo de um vulcão


há um caminho por dentro das veias que só o sangue conhece

e que vai dar direitinho à verdade mais carinhosa


soluça agora o que tens andado a dizer de mim

que eu bebo-te as lágrimas até aos olhos


serei o que quiseres como a verdade que se esconde

e darei ao futuro a magia do teu pretérito imperfeito


marca-me a lacre os lábios para não violar a carta de amor que levo na língua para ti