A minha mãe
deixou de falar para mim.
A minha
irmã deixou de falar para mim.
O meu irmão
deixou de falar para mim. Já não me liga há três semanas. Não respondeu à
mensagem que lhe mandei quinta-feira. Não atendeu, liguei de novo e foi para o voice mail. Não consegui falar para o voice mail.
Estamos
zangados, eu e a mulher, não falamos há uma semana. Só coisas pequeninas: “não
te esqueças de deixar os papéis na casa da tua mãe que ela precisa disso por
causa do IRS”. Mais que isso não dissemos. Nem sozinho fala comigo.
Este
silêncio, este silêncio, este sono, este sono lento.
Andam todos
sem falar há tanto tempo. Calem-se todos já, porra. Calem-se todos de uma vez.
Calem-se! Calem-se! Por dentro estão todos aos gritos. Por dentro insultam-se e
olham e dão porrada até matar. Por dentro quem não fala por estar zangado tem o
pior dom da palavra.
O silêncio
é de ouro. O silêncio é de ouro?! Vou pôr o meu silêncio todo numa loja de
penhores e vou comprar uma motorizada, uma boss
casal que faça rir quando passa. Vou vender o meu silêncio todo numa
daquelas lojas, que agora há muitas, ouro certo, ouro puro, ouro é bom, troca
aqui o ouro, ouro qualquer coisa.
Não gosto
de estar calado quando tenho coisas para dizer por isso, a partir de hoje,
sempre que me apetecer falar falo. E quando vir alguém que quer falar e não
consegue, digo uma piada ou peço-lhe que fale comigo ou então que vá fazer
silêncio para outro lado que os meus ouvidos não aguentam mais.
Mãe, fala
comigo e se não falares falo eu. Imito a tua voz até teres saudades dela e eu
deixar de ter.
Mana, diz
qualquer coisa parva que eu rio-me só para provar que te ouço e que te amo.
Mano, ouve
e responde como se faz nas conversas.
E a quem
não me liga dou o saldo que me resta… E se não responder à mensagem levo-lhe um
pombo-correio nas mãos até à porta de casa. E se a casa me mandar para o voice mail vou ter com ele ao trabalho e
faço uma cena. E se a segurança me acompanhar para fora do edifício, combino
uma noite de copos com eles e cantamos juntos os “Resistência” e a “Dulce
Pontes”. E se a mulher estiver muda, faço-lhe cócegas. E se o homem estiver
calado, dispo-me para ele até que diga coisas porcas que quero ouvir. E se só
falar do IRS e do seguro do carro eu falo do IRS, do seguro do carro e da
novela só para falar de uma coisa mais bonita que o IRS e o seguro do carro. E
quando tiver coisas para dizer, digo a mim sozinho para me ouvir. Gosto de me
ouvir. Gosto de ouvir quem gosto. E mato os silêncios constrangedores à
dentada, à paulada e à gargalhada… e não as mando dizer por ninguém porque a
minha voz é uma dádiva, um dom e uma delícia exóticas.
Anda,
amigo… fala, comigo.
Anda, amor,
fala comigo.
Anda, fala.
Se tens
para dizer, fala.
O silêncio
quando é tenso e contrariado só pode melhorar com palavras. As tuas palavras,
as minhas palavras. Não precisas de as escolher, só precisas de as querer
dizer. Quando o silêncio é demais temos coisas a pensar que não devíamos que
nos calam o que temos de bom.
Diz só o
que tens de bom e guarda o silêncio para ti. Quebra o silêncio de todos até que
não haja dúvidas. O amor da voz é dos mais eficazes.
Fala comigo
agora que vou calar-me. Fala, calei-me. Fala tu, fala tu. A tua voz é a coisa
mais linda e o que vais dizer é o mais importante.
Diz! Diz já,
que depois pode ser tarde.
Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros
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