sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

as vozes que o chão me diz

na presença de um som prefiro-me calado porque um som pode significar

[muito

muita coisa

muito mesmo

muito

mesmo tudo

ouve

estás a ouvir?

então ouve agora com atenção

estás a ouvir com atenção?

pois bem          então imagina este som e faz de conta          na semelhança de

[acreditar que é uma voz

uma que está quase na esperança que a ouças

atenta mais

atenta melhor

ouve nas entrelinhas de quem encosta o ouvido ao chão para ouvir ao longe o

[bater do coração da cavalgada da infantaria

és o índio

tu és o índio que vai perceber antes os anseios dos depois que estão para falar

ou dos antes que diziam mas que emudeceram porque não estavas com os

[tímpanos no cimento da pradaria

o teu papel é este

passar a limpo o que dizem e falar disso aos que levam os tímpanos

[encostados ao ar porque acham que o peito da terra está sujo

o pó que se levanta agacha-te

faz-te deitar          aproximando de ti o planeta que          nesse momento         

[faz o único amigo

encostas o que ouves ao que te dizem

deixas que as lamúrias te usem primeiro os circuitos da orelha para depois os

[perceberes pelo julgamento do ouvido

e entendes tudo como quem escuta sem acenar a cabeça por estar colada

[a um chão quente em que te afundas

o cimento seco engole-te como o fresco e nadas pelo manto até ao centro

e          no centro          encontras todas as vontades que estão por cumprir

ouves as vontades

apontas num caderno à prova de chão e voltas à tona mais dura

quando emerges contas aos milhões o que é que o planeta e todas as vozes

[que foram e que vão ser te disseram

ninguém te dá ouvidos mas tu não fazes caso

pegas no caderno à prova de chão e passas tudo a limpo para um caderno à

[prova de gente

e depois fotocopias o caderno à prova de gente e dás a todos os homens e

[mulheres

e todos os homens e mulheres tentam destruir o caderno

mas não conseguem porque o caderno à prova de gente passa a prova

e então todos passam a viver com o caderno colado na bolsa a tira colo que

[levam quando estão nus

e as vozes que ouviste debaixo da terra estão agora debaixo da pele de todos

e agora podemos encostar-nos ao peito uns dos outros para ouvir o que todos

[querem

e todos querem o mesmo

a mesma coisa

o que todos querem é isto

então          como te correu o dia?

tens frio?

queres um beijinho?

estás zangado?

não estejas

amanhã vai ser melhor

acho que estás com febre

queres que te faça um chá ou que vá à farmácia?

fica-te bem o casaco, compraste onde?

ainda bem que vieste

estava mesmo a precisar de falar com alguém          e só podias ser tu?

queres ir lá a casa passar uns dias nas férias? podíamos pescar

podes ficar com ela          não me faz falta

estás com medo de quê? porquê? não tenhas          dá um abraço         

pronto          já passou

pronto          já passou

perceberam          perceberam?

agora já não é um exemplo das coisas que se ouvem          agora estou mesmo

[a falar perceberam?

é isto que se ouve

é isto que se quer

o que se quer

o que todos nós queremos é um bocadinho de atenção

uma palavra

ou duas

ou três

ou quatro

ou sempre

ou todas

ou aquela que queremos ouvir

ou a que precisamos de ouvir

o que nós queremos ouvir é que esteja alguém a ouvir

e quando não houver remédio

quando não há remédio

quando a dor é maior que a vida e não há nada a fazer o que todos nós queremos é

pronto          já passou

pronto          já passou

pronto          já passou

in "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros

domingo, 24 de janeiro de 2010

Poesia moderna de João Negreiros - Publicado em Obvious por Diana Guerra

Há nomes que marcam toda uma cena underground. Nomes que se destacam em cada movimento cultural e que se tornam quase pequenos mitos urbanos, que, na verdade, são bem reais e até fazem digressões pelo país. Ou simplesmente nomes que são pequenos segredos que, ora queremos guardar só para nós mesmos, ou queremos partilhá-los e mostrá-los a quem nos queira ouvir. João Negreiros é um destes casos.

Este poeta de 33 anos natural de Matosinhos, Portugal, prima pela poesia e pelo teatro vanguardista, tendo já recebido 5 prémios este ano - dois dos quais no Brasil. Está a tornar-se um marco no dinamismo cultural nortenho, levando a cabo diversas acções itinerantes: em Setembro passado os seus textos estiveram em digressão por todo o país, levando a poesia de norte a sul pelas vozes de cinco mulheres e tornando-a mais acessível. O projecto chamava-se Inspiração é Respirar.

Escrevendo desde os 16 anos, o percurso de Negreiros é muito mais do que isso. Além dos livros de poesia editados em Portugal - e brevemente no Brasil - pertence à companhia de teatro re...petição, onde chega a interpretar 30 personagens em apenas uma peça. Paralelamente, produz o programa de rádio Sentido de Amor para cerca de 20 rádios. Em Setembro as suas palavras foram lidas por centenas de pessoas nos autocarros dos transportes urbanos de Braga, havendo poemas afixados nas janelas pela acção Grandes Poemas para Viagens Pequenas.

O seu trabalho mais famoso está, no entanto, no seu blog pessoal. Declamando os seus próprios textos, estes atingem uma profundidade e autenticidade alarmante, como no vídeo "ontem estive no inferno". O pessimismo e o despojo tocam-nos pela veracidade e brutalidade dos textos. Não existem mais palavras para descrever as palavras de Negreiros. É necessário ver os vídeos e sentir a alma do poeta.

http://obviousmag.org/archives/2010/01/joao_negreiros_poeta.html

23 de Janeiro de 2010

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

a fruta que se queria cristalizada




--> -->
a fruta que se queria cristalizada
não sei qual é o tempo da fruta
como o que me dão
sem pensar na hora a que o Sol se põe
as castanhas congeladas do verão sabem-me bem
os diospiros podres da primavera também
não sei quando acaba a época
não sei quando começa a nova
e na minha época também não encontro espaço
finjo maduro sem saber se verde
e amoleço com a mágoa de quem devia ser duro
não sei a que horas devo dar sumo nem como me hei-de chamar
tenho a dificuldade de me reconhecer a origem
a idade
o sabor
o sangue
tenho o medo de me mandar analisar
podia ser obrigado a cortar-me todo e a secar aos bagos
às rodelas
aos nacos
sou a fruta de época que vem a seguir à carta dos gelados
escrita à mão pelo gerente do restaurante que fechou
sou a fruta sem época
sem sumo
sem sabor
e com caroços e pevides a fazer de lágrima
gota de gelo escorre
bochecha da lagarta morta
vai à melopeia da arca das consequências
a que me quer frio para conservar um tempo sem gente
sem árvores
sem chão
e sem os meninos que estiveram para me roubar
aqui está muito frio
ninguém me vai comer
e eu queria
queria a boca que me quebrasse o jejum
me lambesse as feridas
me chupasse as veias
me fizesse as ideias em gomos
e não vem
a boca não vem e imagino-me no palácio quente de marfim a matar-me por todo o lado
mastigando-me por todo o lado
desconjuntando-me por todo o lado para me acabar a eternidade que demora tanto
não tenho validade
não sei a validade
morri por dentro
sou incomestível como a sobremesa fria do natal
e levo as pontas dos dedos a tremer há décadas
se ao menos tivesse luvas
se ao menos tivesse dedos
se ao menos soubesse o que é a lareira
se ao menos me lembrasse da árvore
se ao menos soubesse esperar
se ao menos tu existisses com fome e me amasses com fome eu desfazia-me na tua língua e dava-te o sumo seco azedo de quem
de quem não sabe
de quem não foi convidado para a ceia
de quem não tem família
nem amigos
e que vai levar a vida
e o que falta da morte a tiritar no frio e a implorar pelo fim
in a verdade dói e pode estar errada, de João Negreiros

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O Teatro Universitário do Minho apresenta "o jornalista da vossa beleza"


Depois do grande sucesso de “Inspiração é Respirar”, o Teatro Universitário do Minho aborda de novo o imaginário lírico de João Negreiros. O espectáculo é uma fusão de poemas antigos e inéditos. O naturalismo, a emoção aliados à dimensão sonora da poesia dão a toda a performance uma sensação visceral e palpável, aproximando os poemas dos anseios, medos e problemáticas do próprio público.É um espectáculo alegre e soturno, épico e intimista, hilariante e dramático. As vozes de tessituras diferentes fornecem uma paleta sonora muito abrangente dando cor e alma à literatura que já de si a possui. Momentos únicos com os quais o público se identificará.É a poesia para pessoas primeiro e para poetas depois.É a poesia para pessoas primeiro e para leitores depois.É a poesia para pessoas primeiro e para pessoas agora.
Selecção de textos e interpretação: Agostinho Silva, Andreia Dantas, Eduarda Freitas e Vítor Arezes
Assistência: Dina Costa

Botão de campainha

Não há flores na campa do Narciso
não há flores na campa da Margarida          porque morreu a florista
não há quem os regue com o sal das lágrimas
não há quem os lave com a água dos olhos
não há quem afaste os cardos com esse ancinho ancião que coçava as costas dos finados
a Rosinha morreu
a Rosinha morreu e a irmã mais velha chora de secura a sua lápide
o seu jazigo de suores frios
e todas as flores estão secas          mortas          salgadas
e nada podem fazer pelos mortos que estão moribundos
a florista morreu e o cemitério está vivo
os mortos levantaram-se para consolar as flores
in "o cheiro da sombra das flores"

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

ontem estive no inferno


-->
--> --> --> -->ontem estive no inferno
sabes o que me assustou mais?
foi não ter dado por nada
ontem estive no inferno e não dei por nada porque o que existe lá é o mesmo que existe aqui
ontem estive no inferno e estive mesmo para te chamar
mas achei que não ias querer ver
não tinha nada de novo
e o novo que tinha não era mau o suficiente
era talvez um pouco melhor
um pouco pior
um pouco diferente
mas na essência era o mesmo
o mesmo cheiro
o mesmo sabor
o mesmo som
o mesmo sujo
o mesmo ar
a mesma gente
só que diferente
com roupas rasgadas e esgares de dor
não
espera
o esgar de dor era igualzinho
as roupas
sim
eram diferentes
não
espera
que ontem vi um homem que estava
pois
pois é
nem as roupas
ontem estive no inferno para depois poder contar a todos como é
mas acabei por perder a viagem porque não tenho nada para contar
e o inferno continua
e está a arder nos meus olhos e nos teus também
e nos teus também
e um dia vamos lá parar todos
mas felizmente não vamos sofrer com a diferença
e vamo-nos sentir todos em casa porque a nossa casa é toda a mesma e está a cair como um baralho de cartas que nunca chegou a castelo

ontem estive no inferno e perdi-me lá dentro
e continuo lá
e sei que não vou dar com a maçaneta da porta
e se der não a vou saber rodar
e se a rodar um muro vai tapar a saída
e se o derrubar vai haver um guarda
e se matar o guarda vai haver um homem
e se rasgar o homem vai haver um papel
e não vou ter tesoura
e se tiver tesoura vai aparecer o demónio
e se beijar o demónio na boca e ele me deixar passar para que não conte a ninguém que o amei vai haver um Santo com a inocência ao colo
e não vou ter como o afastar
mas se o Santo perder a inocência e fugir para a procurar eu vou continuar em frente até à próxima barreira que és tu
que eu quero por seres a última
e vou tirar-te à vida devagar
deliciosamente e sem esforço por seres a única e última coisa viva que me impede de encontrar o fim do mundo que é vazio
e magro
e débil
e negro
e seco como o último galgo da corrida
o cão cego que só ganharia se tacteasse o coelho que está no infinito à espera
ontem estive no inferno
ontem estive no inferno
estava lá tudo
estavam lá todos
tu não
tu não
tu não
se estivesses não seria a mesma coisa
in luto lento, de João Negreiros