sábado, 6 de agosto de 2011

Luto



Luto

Lembras-te de ontem? Lembras-te. Lembras-te porque foi há pouco tempo mas… lembras-te mesmo de ontem? Dos pormenores de ontem? Do que te doeu ontem? Do que perdeste ontem? Da temperatura em que tiveste frio ontem? De quem tiveste medo ontem? Se calhar não te lembras tão bem. E se pedisse ao supervisor que te mostrasse a câmara de vigilância provavelmente nem te reconhecias porque, de ontem para hoje, fizeram-se grandes mudanças, enormes mudanças, e a maior foi aquela que te fez esquecer, e como esqueceste os pormenores esqueceste-te também do resto, e como não te lembras bem do que te fez mal deixas que o mal de ontem exista outra vez. E pior… e o pior é que hoje vais deixar que os que hoje são iguais a ti ontem sofram como tu sofreste.
Não tens dedos para contar as cicatrizes porque foram com os anéis… e sente-las no corpo… e sabes que são tuas mas não vais fazer nada para que o teu filho não fique com umas iguais porque achas que é natural que todos passem pelo mesmo, mesmo que o mesmo seja mesmo o que tu quiseste esquecer porque te rasgava por dentro como um verme gigante a quem deram licença para comer os órgãos internos.
E a tua vida já passou, e a dos teus amigos está quase, e agora vais para o alpendre, sentas-te na cadeira de praia que sonha com o mar e ficas a ver tudo outra vez, com o mesmo cheiro, a mesma humidade no corpo, os mesmos gritos, a mesma esperança e o mesmo desespero. E há momentos em que estás quase, quase a levantar-te da cadeira mas tens o rabo tão pesado como a consciência, a voz tão presa como a imaginação, o olhar tão frio como o almoço no frigorífico.
E vendeste a televisão porque do alpendre vê-se tudo com melhor imagem que a digital. É uma imagem com relevo, com vozes que nos arrepiam a espinha, com nomes que percebemos nas entrelinhas por serem filhos dos nossos amigos. E é este o programa da manhã… e o da tarde também… e de certeza que, à noite, também deve haver concursos mas é demais para mim. O dia é longo demais para mim por isso deito-me cedo, com os olhos abertos e o corpo no escuro, a pensar que amanhã será um dia diferente para os novos que eu não quero ajudar e o mesmo para mim, o mesmo para mim. Será sempre o mesmo para mim porque nunca o quis diferente para os outros. E como a felicidade nunca me bateu à porta agora já não a quero. E se ela um dia chegar e subir ao meu alpendre, por engano, e perguntar a direcção de mim… mais novo… que não sou eu… não afastarei os cardos que tapam a campainha.
Aqui sentado, aqui morto e taciturno luto pela igualdade, luto preservando tudo o que o mundo oferece para que todos recebam o que eu recebi, nada.

poema do livro "luto lento" de João Negreiros, à venda em livrarias e em https://www.buknet.pt/?op=pesquisa&pesquisa=jo%E3o+negreiros&t=2