Ontem um rissol de camarão deu-me
um abraço sentido e no fim ofereceu-se para me levar a casa porque eu estava
indisposta.
Quando cheguei, uma mousse de
manga enviou-me uma sms a dizer que tinha muito orgulho em ter uma amiga como
eu.
Acordei a meio da noite e não
conseguia dormir e uma tablete de chocolate branco fez-me um chá de camomila,
depois sentou os quadrados na cadeira em frente e falou-me da família e até
combinámos de ir ao cinema.
Um pudim de ovos levou-me o carro
à revisão. Uma embalagem inteira de torrão de alicante convidou-me para ir de
fim-de-semana. Eu e o torrão de alicante fomos a Benidorm, por lá encontrámos
uma piza familiar e o corredor das bolachas do Pingo Doce que ia numa viagem de
final de curso.
Eu não tenho amigos, nem tenho
família. Basta-me o afecto da comida que me faz mal.
Quando o meu pai liga atendo
enjoada porque comi no bufete um croquete, e uma chamuça e um refrigerante.
Traí o meu marido com um pastel
qualquer.
Abandonei os meus amigos,
tínhamos combinado fazer coisas importantes mas fui fazer uma sobremesa. Fiquei
tão carente de deixar os amigos longe que abracei a sobremesa até cair da mesa
abaixo e vomitar o chão da cozinha todo até patinar.
Que é isto? O que é isto?
Porra, o que é isto? Eu não posso
ser isto.
Eu sou mais do que isto! Eu sou
muito mais do que isto! Eu sou outra coisa!
Eu sou aquilo. Eu tenho paixão
pela comida que me faz má, gorda, doente e às manchas e não tenho pelo que
devo?
Não tenho a quem devo?
Não tenho a quem devo?
Mas que merda é esta?
A partir deste momento tudo o que
me faz mal passa também a saber-me mal.
A partir deste segundo tudo o que
fizer mal ao meu corpo será rejeitado por mim que sou guardiã do que sou e do
que quero ser.
O afecto que tinha pela gula e a
gula que tinha pelo afecto vou dá-la toda, vou dá-la toda às pessoas que me
fazem bem e às coisas que quero fazer.
Aprendi e ensinaram-me a gostar
do que me fazia mal. Aprendi a gostar à conta disso. Só me falta gostar do que
preciso. E preciso mesmo é de ti. Preciso de ti que és uma pessoa e me dás amor
em troca de carinhos.
Sei que depois disto um gangue de
sobremesas me esperará com correntes e pés de cabra mas não tem mal… eu sou
corajosa.
Sei que depois disto um exército
de fast-food far-me-á uma perseguição em plena auto-estrada mas não tem mal… eu
sou corajosa.
Sei que depois disto receberei
telefonemas anónimos ameaçadores a meio da noite feitos por um chocolate de
culinária raivoso mas não tem mal… eu sou corajosa.
A verdade é que não preciso de
açúcar a mais,
sou
doce.
A verdade é que sou espirituosa,
não
preciso de sal.
Vou pegar no conforto que sinto
quando como,
vou pegar na paixão que sinto
quando quero comer,
vou pegar na vontade que tenho
quando mastigo e entregarei tudo a quem me faz bem à saúde.
Sabes… sabes… sabes-me… bem.
Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros
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