lambe o dorso de um cavalo e
o dorsal de um triatleta
para perceberes a distância
que vai da crina ao suor
toma o corpo do jogador a
contar as ripas do banco
e ouve o hálito da
prostituta a quem veio o período
para perceberes a distância
que vai da tristeza ao purgatório
veste o sono do segurança
das horas mortas da morgue
e come a terra do cadáver
que acordou vivo
para perceberes a distância
que vai do pesadelo à falta de ar
descalça-te e sente entre os
dedos a rua pintada a sangue
depois unta-te a mel e viola
uma flor
para perceberes a diferença
entre o podre que permites e o podre que praticas
apanha um autocarro
caminha lá por dentro até
bateres no fundo
e depois volta na chuva do
regresso
para perceberes a diferença
entre o bicho que morre na jaula e o que bate com os chifres
à porta do matadouro
arranha os dias com uma
guitarra
e come um pulha ao jantar
para perceberes a diferença
entre tocares viola e tornares-te útil
arremessa pedras a uma
multidão
e em seguida faz o mesmo
contra o mar encapelado
para perceberes a diferença
entre a raiva dos homens e a natureza da tolerância
aproxima-te de um
forasteiro aquece-lhe as mãos
com as mãos que levas nas luvas
e depois chama-lhe a cor
dele com a entoação que damos quando parecemos valentes
para perceberes o tempo que
vai do carinho ao cobarde
agarra uma oportunidade e
depois inventa outra
para que distingas o
oportuno do oportunista
ameaça fazer o bem a um
homem mau e promete fazer o mal a um homem bom
para perceberes que a
diferença é mínima
dá um nome a uma cor que já
existe
e em seguida vê-a pelos
olhos de uma luz diferente
para perceberes a diferença
entre um charlatão e o Sol
arrebata um coração e
trespassa outro
e vai do amor ao assassino
poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros