domingo, 11 de janeiro de 2015

os olhos de uma luz diferente

lambe o dorso de um cavalo e o dorsal de um triatleta
para perceberes a distância que vai da crina ao suor

toma o corpo do jogador a contar as ripas do banco
e ouve o hálito da prostituta a quem veio o período
para perceberes a distância que vai da tristeza ao purgatório

veste o sono do segurança das horas mortas da morgue
e come a terra do cadáver que acordou vivo
para perceberes a distância que vai do pesadelo à falta de ar

descalça-te e sente entre os dedos a rua pintada a sangue
depois unta-te a mel e viola uma flor
para perceberes a diferença entre o podre que permites e o podre que praticas

apanha um autocarro
caminha lá por dentro até bateres no fundo
e depois volta na chuva do regresso
para perceberes a diferença entre o bicho que morre na jaula e o que bate com os chifres à porta do matadouro

arranha os dias com uma guitarra
e come um pulha ao jantar
para perceberes a diferença entre tocares viola e tornares-te útil

arremessa pedras a uma multidão
e em seguida faz o mesmo contra o mar encapelado
para perceberes a diferença entre a raiva dos homens e a natureza da tolerância

aproxima-te de um forasteiro          aquece-lhe as mãos com as mãos que levas nas luvas
e depois chama-lhe a cor dele com a entoação que damos quando parecemos valentes
para perceberes o tempo que vai do carinho ao cobarde

agarra uma oportunidade e depois inventa outra
para que distingas o oportuno do oportunista

ameaça fazer o bem a um homem mau e promete fazer o mal a um homem bom
para perceberes que a diferença é mínima

dá um nome a uma cor que já existe
e em seguida vê-a pelos olhos de uma luz diferente
para perceberes a diferença entre um charlatão e o Sol

arrebata um coração e trespassa outro
e vai do amor ao assassino

poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros


quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O presente

Pega no presente como se nascesses no Natal e não sofras com o que foi… que o que foi está longe como o que só foi agora uma vez.
Pega no presente e envolve-o lasso suficiente para caber quem gostas.
Pega no presente e começa de novo usando tudo para trás como informação tua noutra vida em que eras o mesmo… mas não tão perfeito.
Pega no presente e percebe que é o momento.
Pega no presente e sabe de cor interiormente, sem cábulas, tudo o que te aconteceu porque tudo o que te aconteceu fez sentido, e o sentido foi o que te trouxe até aqui, e aqui é perfeito para dar início a mais um momento áureo.
Pega no presente até ao infinito e perpetua o instante como o especial.
Pega no presente e torna-o tão único como a água e faz dele a pujança inequívoca de estar tão vivo como tudo o que é impressionante.
Pega no presente e pulsa o ritmo cadente de um músculo novo que nasce sem esforço porque se inventa como o vento e as marés.
Pega no presente e faz tudo de novo como se respirasses a coragem.
Pega no presente e acende-o como a luz faz ao escuro.
Pega no presente e mata o medo do teu vocabulário como se só tivesses cheta para um dicionário de bolso.
Pega no presente e faz dele o que virá. E do que foi soubeste ver tudo, gostaste de ver tudo, precisaste de ver tudo.
Pega no presente e sabe que o que se passou foi para te fazer e o que há-de vir há-de ser sempre já.

Texto d' "O Manual da Felicidade" de João Negreiros