eu
só queria que o mundo fosse de toda a gente
de
todos
dos
bons
dos
maus
e
dos outros
gostava
que o mundo pertencesse aos vivos
mas
que os mortos também o pudessem visitar
não
em dias marcados
mas
nos dias em que lhes apetecesse aparecer
que
o dia de finados é muito curto para lembrar os que foram para a terra da
verdade
eu
queria que o mundo fosse de toda a gente
de
todos
dos
belos
dos
feios
e
dos outros
dos
outros que tu só sabes se são se os conheceres bem até lá adivinhas-lhes a
[beleza espreitas-lhes a fealdade
e
depois há aqueles que nos poupam o trabalho são feios à partida ou belos
[à
partida
e
aí é muito fácil
não
temos que perder tempo a ouvir o que dizem e a ver o que fazem
são
bonitos e pronto
são
feios e pronto
e
aos bonitos damos tudo
abrimos-lhes
a porta da nossa casa
as
casas da nossa camisa
e no fim casamos com eles
e
depois percebemos que já é tarde demais
e
que ficaram pançudos
e
perderam o cabelo e a moral
se
bem que isso é um pormenor
os
feios também nos poupam trabalho
mas por outro lado dão-nos muito
e
quando os dizemos dizemos eles
porque são todos iguais
quando
batemos batemos neles porque são
todos iguais
quando
matamos matamos neles o que é nosso
e
eles depois já não voltam
vão
para a terra da verdade
e
quando nos perguntam se fomos nós
mentimos
e
o mundo é de todos mas tem dias
o
mundo é nosso e dos outros também
e
é bem melhor ser dono de alguma coisa do que também ser dono de alguma coisa
o
também significa que nos deixam estar
que
até nem lhes causa qualquer tipo de transtorno o facto de respirarmos
mas
o facto de respirar faz-me ficar aflito porque o ar que me inunda as narinas
não é
[meu é deles
e
eles são belos e eu não
e
o meu ar é emprestado
e
é só por uns dias porque um dia vou ter que o devolver
e
a minha vida vai ficar mais rarefeita
e
vou ser um asmático no topo de uma montanha com muito frio
com
muito sono
e
recosto-me
e
abraço o boneco de neve que me jurou fidelidade eterna
e
adormeço no quente do gelo e
pronto
e
agora o mundo tem dias em que posso voltar e fazer uma visita
e
todos são bons para mim
e
todos dizem que eu não merecia o meu destino mas o ar está caro
o
mundo devia ser de todos mas a
verdade é que foi feito apenas para os que
[respiram
e
só os outros conhecem a verdade
a
verdade está e estará sempre na boca de um defunto que nunca esteve para nascer
poema do livro "luto lento" de João Negreiros