sábado, 29 de novembro de 2014

Novo livro de poesia


É o livro dos pormenores.
É o livro que fala de todas as coisas em que pensamos e que depois esquecemos.
É o livro dos comportamentos injustos que temos para com tudo o que nos inspira e desinspira os dias.
É um livro pensado para seres humanos com uma linguagem quase extraterrestre  porque dá ênfase ao invisível que nos move.
É o livro da esperança e da falta dela.
O livro do amor e da falta dele e, acima de tudo, é a obra que festeja o apogeu da coincidência. O acaso é um milagre porque tudo o que acontece é para ser celebrado.

Livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros

domingo, 23 de novembro de 2014

"Isso mesmo"


Isso mesmo

Não posso pensar no que os outros pensam.
Posso então não pensar no que os outros pensam?
Não, porque quando penso em não pensar no que os outros pensam acabo por pensar no que os outros pensam… ou no que eu penso que os outros pensam de mim.
Pensar no que os outros pensam de mim sem ouvir os outros deve ser o que acho de mim… ou então o que acho que ouvi de mim… quando os outros estavam calados.
Os outros são muita gente porque os outros são todos os outros e deve haver outros para todos os gostos. E os gostos deles devem gostar e não gostar de mim, perceber e não me perceber, conhecer-me e não me conhecer.
Os outros que não me conhecem não sabem quem sou… mas penso neles como se os conhecesse.
Pensar numa coisa faz a coisa existir e não pensar faz não existir. Se uma coisa não existe passa a existir no passado ou na imaginação e isso dá no mesmo, o mesmo sou. Eu sou sempre eu porque sou muito parecido com quase tudo o que sei.
Sair à rua é um processo passível de apresentar inúmeras conjecturas e dissertações e isso é profundamente… isso é profundamente… isso é profundamente… isso é profundamente uma merda.
A profundidade do que não sei é a mais fútil verdade, a profunda mentira.
A sabedoria de quem não sabe do que fala é a estupidez traduzida para gambuzinos.
Quem não me conhece pode pensar no que sou mas não tem acesso à informação porque o único detentor da informação sobre a minha pessoa sou eu, que sou a única pessoa que pode ser minha.
Pensa de mim o que quiseres, não existe.
Faz de mim o que for, não serei.
Diz de mim o que achares, não me conheces.
Olha para mim como se soubesses, não me vês.
Define-me… não há palavras.
Ilustra-me… sou um livro sem bonecos.
Pinta-me… sou um livro de colorir que passou por todas as mãos do jardim-de-infância.
Apresenta-me… só eu sei o meu verdadeiro nome.
Marca-me… só eu tenho acesso à minha pele.
Explora-me… sou deserto.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo.
Penso de mim o que quero e sou isso mesmo… isso mesmo… isso mesmo… isso mesmo…

Texto d' "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Há espaço para mim no cume



Há espaço para mim no cume

Se escalasses o maior pico da maior montanha serias capaz de parar três metros antes e voltar para o quentinho?
Se fosses à Lua preferias ficar dentro da cápsula espacial a ver desenhos animados ou a jogar paciências sem gravidade?
Se fosses campeão do Mundo preferias ser do Mundo todo ou abdicavas de parte dele só para deixar países de fora da tua excelência?
Se estivesses quase quase, eras capaz de dizer “pronto, pronto”?
Se estivesses quase a chegar eras capaz de dizer “pronto, já chega”?
Se fosses mesmo crente numa coisa serias só crente na intempérie, na borrasca, na adversidade, na procela, no desespero?
Não eras capaz de crer também no céu mais claro a cheirar a terra molhada, no chá para a garganta roufenha, no sorriso e na vitória?
Ganhar é desconfortável? Faz-te comichão? Dá-te vontade de voltar para o quentinho e de não espetar a bandeira no cume mais improvável?
Ganhar abre o problema da habituação. Se começas a ganhar e a vencer, que é a mesma coisa, tornas-te repetitivo e depois não sabes fazer outra coisa. E vais ter menos coisas em comum com quem perde.
Queres um comprimido? Queres um xanax para te acalmar esse punho no ar a brandir vitórias? Queres um cobertor? Um programa de sábado à noite gravado para não pensares mais nisso? Queres um cérebro de um babuíno para não veres mais do que um banana?
Ó pá! Deixa-te de merdas e ganha! Ganha agora, ganha depois, ganha ontem, ganha sempre.
E se perderes… ganha. E se te custar ganha. E se não gostarem de ti ganha. E se gostarem ganha. E se continuarem a gostar ganha. E se te admirarem ganha. E se te desprezarem ganha. E se fores feio ganha pela beleza. E se fores bonito ganha para ficares feio, e a cheirar mal e cheio de inimigos, mas vencedor como aquele que faz o seu destino ao mesmo tempo que faz o resto.
Ganha até que não saibas nada para além disso. Ganha até que não seja ganhar. Ganha até que seja andar, respirar ou outra coisa tão real como estar.
E quando te disserem o que quer que seja tu responderás o que for porque a vitória não tem significado, é apenas aquilo para que te levantas todos os dias.
E se o sucesso for menos interessante e enigmático que o falhanço e a tristeza, tens razão. O sucesso é um sítio simples como tudo o que se percebe… e tu só percebes isto: ganha sempre até que a vitória seja o início.

Texto do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

terça-feira, 11 de novembro de 2014

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Amo-te por fim e isto é só o início

Ontem abracei a minha mãe enquanto ela remexia o estrugido para não queimar a cebola e ela disse:
- Deixa-me, filha que agora estou a fazer o jantar.
E eu disse:
- Não tenho fome.
E ela disse:
- Olha que queima.
E eu disse:
- Gosto do cheiro a cebola queimada nos teus braços. Amo-te de cebolada, mãe.
Ontem abracei a minha filha e ela disse que a deixasse em paz.
Deixei-a em paz e esperei em paz por um segundo melhor em que ela quisesse mais e precisasse mais de outro abraço.
Olhei com atenção e o segundo chegou rápido. Abracei-a então com mais carinho ainda e com um abraço que escolhi à medida do corpo que ela trazia na altura.
Eu gosto de dar o que os outros pedem, e querem, e precisam, e sentem, e merecem.
Para a minha filha, para a minha mãe dou o que sinto como sentiria se fosse este o último segundo de a ver.
Se estivesse a ver a minha pela última vez, se estivesse a ver a minha pela última vez dizia:
Gosto de ti para sempre porque um segundo é coisa pouca.
Mas sei que esta não é a última e isso é bom.
Esta vez não é a última mas é como se fosse porque na última posso não ter oportunidade.
Vou amar-te quando não estiveres mas amar-te-ei mais quando estiveres comigo.
Porque não sei como será o fim e porque não quero saber, a partir deste dia, direi o amor a quem amo como faço a mim própria quando gosto muito de mim.
Gostar de quem está perto e é bom para mim é a segunda melhor maneira de ser bom para mim.
A primeira é gostar de mim como um beijo no espelho.
Nunca digo à minha mãe que a amo porque sei que ela sabe, mas como sei que ela gosta de ouvir digo à mesma como se não soubesse.
Nunca digo à minha filha que a amo porque sei que ela sabe, mas como sei que ela gosta de ouvir digo à mesma como se não soubesse.
O amor só se sabe quando se tem a certeza e para se ter a certeza é preciso dizê-lo e repeti-lo muitas vezes até se saber de cor.
O amor só sabe bem quando se sabe de cor.
Decorei isto para ti, mãe… espero que gostes.
Decorei isto para ti, filha… espero que gostes.

Texto do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

domingo, 2 de novembro de 2014

a terra da verdade

eu só queria que o mundo fosse de toda a gente
de todos
dos bons
dos maus
e dos outros
gostava que o mundo pertencesse aos vivos
mas que os mortos também o pudessem visitar
não em dias marcados
mas nos dias em que lhes apetecesse aparecer
que o dia de finados é muito curto para lembrar os que foram para a terra da verdade

eu queria que o mundo fosse de toda a gente
de todos
dos belos
dos feios
e dos outros
dos outros que tu só sabes se são se os conheceres bem          até lá adivinhas-lhes a 
[beleza          espreitas-lhes a fealdade

e depois há aqueles que nos poupam o trabalho          são feios à partida ou belos 
[à partida
e aí é muito fácil           
não temos que perder tempo a ouvir o que dizem e a ver o que fazem
são bonitos e pronto
são feios e pronto

e aos bonitos damos tudo
abrimos-lhes a porta da nossa casa
as casas da nossa camisa
e          no fim          casamos com eles
e depois percebemos que já é tarde demais
e que ficaram pançudos
e perderam o cabelo e a moral
se bem que isso é um pormenor
os feios também nos poupam trabalho          mas por outro lado dão-nos muito

e quando os dizemos          dizemos eles porque são todos iguais
quando batemos          batemos neles porque são todos iguais
quando matamos          matamos neles o que é nosso
e eles depois já não voltam
vão para a terra da verdade
e quando nos perguntam se fomos nós          mentimos
e o mundo é de todos          mas tem dias
o mundo é nosso e dos outros também
e é bem melhor ser dono de alguma coisa do que também ser dono de alguma coisa
o também significa que nos deixam estar
que até nem lhes causa qualquer tipo de transtorno o facto de respirarmos
mas o facto de respirar faz-me ficar aflito porque o ar que me inunda as narinas não é 
[meu          é deles
e eles são belos e eu não
e o meu ar é emprestado
e é só por uns dias porque um dia vou ter que o devolver
e a minha vida vai ficar mais rarefeita
e vou ser um asmático no topo de uma montanha com muito frio
com muito sono
e recosto-me
e abraço o boneco de neve que me jurou fidelidade eterna
e adormeço no quente do gelo          e pronto
e agora o mundo tem dias em que posso voltar e fazer uma visita
e todos são bons para mim
e todos dizem que eu não merecia o meu destino          mas o ar está caro
o mundo devia ser de todos          mas a verdade é que foi feito apenas para os que 
[respiram
e só os outros conhecem a verdade
a verdade está e estará sempre na boca de um defunto que nunca esteve para nascer

poema do livro "luto lento" de João Negreiros