domingo, 17 de agosto de 2014

a invenção da dor

é suposto amar-se muita gente como a nós

mas se não gostarmos do que nos vai dentro não amaremos gente por fora

porque não o distinguiremos do marulhar das folhas no vento que sabe à maresia que esteve nos ouvidos do afogado mais fundo

urge termos por nós a certeza do afecto

para que transborde pelos poros que a natureza nos deu a vontade de submergir a terra de um ar novo e simples que mostre às gentes novas cartilhas com orelhas no canto das folhas porque foi precisa a nossa saliva para virar a página que tinha a dor escrita numa nota de rodapé com letra pequenina

sabemos a dimensão que nos acrescenta

mas hesitamos na procura do sonho porque achamos incoerente voar sobre as cidades de pijama

mas é a acreditar neles como reais que os tornamos reais

é a acreditar neles como nossos que os tornamos nossos

é a acreditar neles aqui que os temos em nossa casa

na nossa cama

e os nossos lençóis sabem a história do mundo desde o princípio

como se a baba do travesseiro lhes tivesse contado os males de amor de um curandeiro do paleolítico que a História não guardou porque não acabou bem

levemos connosco ao colo os pensamentos que tivemos há muito em horas de aperto

vamos dar às nossas lutas interiores a beleza dos universos pacíficos

que nos dão paisagens ao corpo e ventos à pele que sabe as curvas da carne

por ser a amizade mais próxima que o mundo tem o nosso corpo ama-se entre si como o irmão que temos mas que partiu cedo demais

vamos entender o que somos como o que somos se entende em si

a pele tapa a carne

a carne tapa o osso

o osso sustenta tudo

e os órgãos sabem as conversas que teriam se falassem como amantes antes da cópula

larga a dor que inventaste

fica só com a que inventaram para ti

poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros

1 comentário:

  1. Muito muito bom! Gostei muito! Obrigada por estes textos que parecem uma lufada de ar fresco...

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