terça-feira, 12 de agosto de 2014

Texto de "O Manual da Felicidade"

Não suporto quem não precisa de mim.
Deixa-me louca quem não precisa de mim. Preciso tanto de pessoas que precisam de mim.
Eu quero dar-me mas há tão pouca gente no mundo que me sabe receber.
Não quero nada. Só obrigado, beijinhos, prendas pequenas com postal nos anos, flores quando me morrer alguém e guizos quando me nascer.
Irrita-me esta necessidade de dar mesmo quando não me querem. Ponho-me a jeito. Tiram-me o tapete. Fico exposta.
Detesto quem me diz:
- Deixa estar, não é preciso.
- Estou bem, obrigada.
- Não te incomodes.
Mas eu incomodo-me. Eu adoro incomodar-me. Eu sou incómoda por natureza. Eu quero fazer empadas, e queijadas, e levar-te ao hospital, e dar-te sal e óleo quando te faltar. Por favor, pede-me para te ficar com o cão nas férias que eu ensino-lhe truques.
Deixa-me ser generosa. Tenta ser egoísta por mim. Anda lá, fá-lo por mim.
É um desespero isto da generosidade, dou em louca com isto da generosidade.
Gostava de ter talento para ser enjoada e enigmática mas não tenho jeito para isso. Sou dada, desbocada, oferecida, assumida, sem vergonha, sem medo, sem mentiras.
Dou-me a quem quero quando me apetece mas, a partir de hoje, quando vir quem não me quiser… a partir de hoje, quando estiver perante quem não precisa de mim… a partir de hoje, quando estiver mesmo à frente de quem acha que estou a mais, dou-me só a mim própria.
Faço as empadas e como-as eu. Faço as queijadas e como-as eu. Adopto um cão pequenino no canil, e nem vou ao hospital porque sou sã e fico a ver o Natal dos Hospitais a beber chá de cidreira. E o sal mete-o no pão que não o tiver e com o óleo que me sobrar troco o do meu carro que deve estar a precisar, que o meu pai já me avisou na quinta-feira.
Eu sou dada e desbocada e oferecida a quem amo e me quer.
Para quem não me quiser cozinho para mim, falo sozinha e solto uma gargalhada de uma piada que disse e que ninguém percebeu.
Quando quem me quer não está dou-me bem sozinha.
Quando quem me quer não estiver dar-me-ei bem sozinha.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

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