sábado, 26 de abril de 2014

Excerto d' "O Sol Morreu Aqui"

"Pedir ajuda a quem não está é a maneira que o ser humano arranja para adiar ajudar-se a si próprio. Chamar por alguém que não está é o que se faz quando temos batalhas interiores para travar."

in "O Sol Morreu Aqui" de João Negreiros

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Excerto d' "O Sol Morreu Aqui"

Há pessoas sãs que acreditam em cada coisa! E há pessoas desvairadas que acreditam em coisas lindas e exactas. E há pessoas sãs de cabeça e de corpo que não acreditam em nada, nem no ar, nem nos bichos, nem nos corpos, nem em nada. Todos têm medo da estranha por estar a começar a deixar de o ser, mas o contrário é a tristeza. É melhor a desgraça ou a tragédia que a tristeza. Na tristeza não acontece nada. Na desgraça ou na tragédia ainda a gente se entretém.
A Lúcia filha, que é para todos Lu, diz juntando-se à festa:
- Se a Dona Noémia não se importa eu não me importo e se a Vera quer tanto acho que devíamos tratar dos papéis para termos a Dona Noémia como avó.

E agora está também a Lu senil e a senilidade em idades tão jovens é a verdade e, por isso, todos se tranquilizam e entram na festa apesar de só haver chá preto, bolacha Maria, bolacha torrada e compota a compor tudo aquilo.


Excerto do livro “O Sol Morreu Aqui” vencedor do prémio literário internacional Dias de Melo de 2012. 

domingo, 20 de abril de 2014

Excerto d' "O Sol Morreu Aqui"

A casa tem saudades dos que lá estiveram mas tenta não se lembrar deles. Foi a maneira que arranjou de evitar um sentimento que desmoronasse. A casa é muito inteligente. Tenta encolher as arestas onde se possa esconder maldade. Tenta arredondar bicos de mobília, tenta comer borbotos que piquem em almofadas fofas, tenta engolir o pó que faça as pessoas tossir impropérios. A casa é muito inteligente e faz tudo para evitar o destino, o destino é destituído e não quer saber mas a casa há-de manter-se de pé, lutando por um futuro melhor. Se as pessoas e os bichos e as plantas que são a vida não evitam a maldade, porque não hão-de os objectos inanimados tentar a sua sorte? Porque não? Porque não? Porque não? Porque não? Os colchões em roupa interior vão para as varandas já secas e apreciam a vista que o pudor permite. A Primavera tosse um líquido viscoso por todos os orifícios e vê-se morrer e a secar para dar lugar a algo melhor e mais radiante. As escadas descem-se melhor sem poeiras. Tapetes feitos de muito tempo conversam pendurados numa corda de estendal e copos de pé que estão por decoração são lavados com o detergente a tomar as vezes do álcool. Passarinhos pousam no recheio lá fora e tecem considerações pelo progresso não ter vindo por aquelas bandas dar conta deles e de tudo o resto. Depois as almofadas, lençóis, fronhas, colchas e toalhas fazem uma viagem em filas de cestos até à lavandaria e nela conversam sobre a actualidade. Como passaram a vida em gavetas, as conversas são curtas e inexistentes. Cheira a lavado. O cheiro a lavado, para quem é da cidade, pode ser facilmente confundido com Primavera, natureza, ar puro, felicidade ou algo muito bom para sobremesa.



Excerto do livro “O Sol Morreu Aqui” vencedor do prémio literário internacional Dias de Melo de 2012. 

sábado, 19 de abril de 2014

"O Sol Morreu Aqui" - romance


O romance “O Sol Morreu Aqui” venceu o prémio literário internacional Dias de Melo de 2012. O júri, constituído por personalidades de reconhecido mérito literário, foi unânime em considerar a obra de João Negreiros merecedora do prestigiado galardão, tendo decidido também apoiar a sua edição. Os membros do júri consideraram que o romance vencedor será “um marco importante na literatura portuguesa", sendo uma obra de “inegável valor literário muito superior à maior parte das que se vão publicando em Portugal”. “O originalíssimo narrador auto reflexivo e subversor da própria narrativa que controla, embora finja muitas vezes que ela se lhe escapa; o desconcertante clima surrealista num livro de sabor realista;  a lúcida dimensão ética que assume;  a forma como, a partir de várias histórias que correm em paralelo, acaba por as tornar numa unidade narrativa; a ironia de uma eficácia rara”;   foram algumas das razões apontadas pelo júri, para declarar a obra como vencedora do concurso.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

"O que eu sou é a felicidade de estar viva" - O Manual da Felicidade

Gostava de sair à rua com um decote até ao chão. Um decote que mostrasse tudo, o cu, as mamas, o resto, tudo, até ao chão, até estar nua se não estivesse frio. Se estivesse frio podia estar quentinha vestida com meia-calça mas toda nua por dentro da meia-calça e da camisola interior.

Gostava de poder andar nua na rua no Verão e poder olhar para os homens sem precisar de ter medo de eles olharem para mim.

Gostava de me chamar “o que é que foi, nunca viste?”.

Gostava que a rua fosse minha e que na minha rua os homens fossem cavalheiros paternos que não aprenderam o paternalismo.

Gostava de me poder rir como as adolescentes, nunca me ri como uma adolescente. Adoro o riso das adolescentes. Nunca fui adolescente, tenho saudades. Acho que passei da infância à idade adulta durante a noite… para a próxima faço directa para rir toda a noite enquanto mando sms a um puto giro que anda um ano à frente e que já repetiu duas vezes…

Quero desfilar com lantejoulas até cegar quem pede esmola e quero ser a melhor amiga das mulheres.

Eu não me visto linda por causa do sexo dos homens. Eu visto-me linda por mim. Eu dou-me aos homens por mim se eles forem bons e ternos e sãos e puros e sábios e sinceros e honestos e lindos e príncipes encantados com bom feitio e ogres malvados com bom coração.

O medo não me deixa vestir o que quero e o medo não me deixa despir quando quero mas a partir de agora… a partir de agora mato o medo do meu guarda-roupa e visto a cor que me ficar melhor. A partir de agora vou vestir o mais ousado que a minha prudência quiser e o mais recatado que a minha coragem deixar.

Eu sou uma mulher. Não sou mulher para fazer inveja às outras mulheres. Sou mulher para ser vossa irmã. Eu sou uma mulher. Não sou uma mulher para provocar o homem. Eu compreendo-me só e dou-me aos outros só para partilhar o que sou com eles.
O que sou é isto. O que sou é a felicidade de estar viva. O que sou é a capacidade infinita de amar todos os que me rodeiam como se tivessem sido feitos para mim e para me entenderem.

Eu sou a mulher. Vivo para ti e tu és todos. Não faço nada de propósito mas se a minha felicidade e a minha beleza te inspirarem podes dizer-me bom dia e até podes amar-me incondicionalmente. Eu farei o mesmo.


Eu sou a mulher e visto-me a mim própria todos os dias para mim… e para ti.

Texto d' "O Manual da Felicidade" de João Negreiros