domingo, 6 de junho de 2010

o murro

Poema feito à Imagem - "O Murro" from Abraham Tark on Vimeo.

o murro

ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti todos os dentes a quem me disse tal coisa

é que não aguentei

porque não insultou minha mãezinha e seus hábitos conjugais como eu estava à espera?

porque não insultou minha mãezinha afirmando que todos os homens do globo poderiam ser o meu paizinho?

porque não me disse que cheirava mal?

porque não me inventou uma corcunda?

porque não aproveitou          conjugando as duas correntes          e descreveu minha mãezinha como um ser desprovido de higiene e com protuberâncias dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?

chamar-me a mim razoável?!

eu que sou extraordinário de tão ruim

eu que estou nos pólos com os iões

eu que faço tudo para me destacar

violo meninas em plena avenida para depois salvar o mundo

dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto

mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não gosto

eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade

eu          rei dos povos e súbdito dos mendigos

eu sou o contrário do razoável

ninguém me ama com medo de se apaixonar

todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue que se habituou ao cheiro da glória que não se quer render à vida para procriar

eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas

o imperador de palácios vazios

o vagabundo de séquito interminável

a divindade a quem faltam promessas

o risco sem medo

a justiça sem pecador

vivo para lá da lei na origem dos decretos

chamar-me a mim razoável quando sou limpo

sem rasuras

sem razão

chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão aos patos quando o mar está revolto

dá-me antes um murro em plena face          resvalando a jeito de me partir o nariz para depois me tratares com curativos pintados de bonecos da infância que estava no armário dos medicamentos

ser razoável é pior que mau

é melhor que bom

e é igual a mais ou menos          que é pior que mau

e melhor que bom

e igual a mais ou menos

ser razoável é nem sequer estar

é estar sem querer

é comer sem gosto

é borrar sem cheiro

é morrer sem choro

é cantar sem alma

é estragar o que está precisamente maduro

é esquecer o que acabou de se fazer

é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao infortúnio

ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que mau

é melhor que bom

e é igual a qualquer coisa

dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e me lembrar que no extremo está a virtude

nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas

mais pretas

com mais chifres

e mais longe de casa porque abominam o que é doméstico

o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar

o esquimó fresquinho que o menino não chega a lamber porque está no fundo da arca para além do rio mais gelado e do pingo do nariz

chamar-me a mim razoável é chamar ao homem selvagem e à mulher mulher dele

chamar-me a mim razoável é chamar a vós também que levais os ouvidos tapados

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que não há hipótese de mudar isto para melhor

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que não há hipótese de mudar isto para pior

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que estamos a mudar tudo para mais ou menos

exijam o murro em plena face

gritem pelo murro

façam o abaixo-assinado pelo murro

mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face

recebamo-lo com um sorriso com menos dentes e sangue a escorrer livre

e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto

vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias estratosféricas nas lojas de haute-couture

e          na impossibilidade de encontrar o equilíbrio

o conforto

o quentinho

o meio

encontramos a humanidade que é feita de defeitos

amores impossíveis

rotas ocasionais

céus carregados

searas em chama

florestas virgens

assomos de bravura

loucuras temporárias

e tranquilidades passageiras

e tu          que levas os dentes partidos só porque alguém não te quis perfeito          sabes agora a importância de saber

tu          que lavas a boca no chafariz na despedida do incisivo          sabes agora ao que vens

ao que venho

ao que vimos

sabes agora que somos

somos tudo

somos completamente tudo

somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se afogarem pela rapidez do rio

in "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros