quinta-feira, 31 de julho de 2014

Revisitação do que por aí vem

Era um país sem sonhos e sem moral… onde as pessoas viviam sem sonhos e sem moral. E no país sem sonhos e sem moral… as pessoas viviam sem sonhos e sem moral.
Mas um dia, no país sem sonhos e sem moral, onde as pessoas viviam sem sonhos e sem moral, nasceu uma pessoa, que começou por ser criança e que, quando deixou de ser criança, optou, ou se calhar não optou, se calhar aconteceu antes de ser criança… ou antes de nascer criança… bem… o que é certo é que a pessoa que nasceu criança e que foi criança até deixar de o ser tinha uma perspectiva diferente da vida e da forma como encarar a vida, isto é, ao contrário de todos os outros que não tinham sonhos nem moral, esta pessoa nova que havia recentemente abandonado a infância tinha sonhos de algodão e uma moral de ferro… e a combinação dos dois fazia desta pessoa nova uma figura realmente única e eventualmente exemplar. Quando digo exemplar não quero com isto dizer que fosse passível de ser um bom exemplo… mas passível de ser um exemplo.
A pessoa nova, que tinha nascido no país sem sonhos e sem moral, era uma lufada de ar… não se sabe se fresco, uma pedrada no charco… não se sabe se lama, para o país sem sonhos e sem moral.
E então… num dia sem nome… a uma hora que não interessa, os habitantes do país sem sonhos e sem moral, que eram as pessoas sem sonhos e sem moral, deram todo o poder àquela criatura nova que, ao contrário de todos os outros, tinha sonhos e tinha moral.
A pessoa nova que tinha sonhos e que tinha moral, depois de receber o poder sobre tudo e sobre todos ofertado pelas pessoas sem sonhos e sem moral, decidiu matar todos os que o rodeavam e tornou-se no único habitante do país sem sonhos e sem moral.
Foi a maneira que arranjou de se sentir realizado, integrado, respeitado, feriado.
poema do livro "a verdade dói e pode estar" de João Negreiros

segunda-feira, 28 de julho de 2014

para acabar de vez com a ignorância

a ignorância fascina-me porque me dá a sensação de que é sempre possível ser mais
[estúpido
e muitas vezes é na estupidez que reencontramos a nossa humanidade
é como dizeres          dei aqui um jeito que nem consigo mexer as pernas
e sem saberes estás paraplégico
e o saberes traz-te a dor que não conhecias porque não sentias as pernas         e
[agora passaste a sentir que morreram
é como quando começas a falar com palavras que não são tuas
mas que te foram emprestadas por uma cartilha ou um panfleto que te deram na rua
aí começas a esquecer o que fica do pescoço para cima e a dar a todos          menos
[a ti          a capacidade de te criarem à sua semelhança          como um Deus em [segunda mão

e moldam-nos como barro
e moldam-nos com o berro que nos recria para desrespeitar o miúdo que já fomos e que
[mataríamos sem hesitar se nos conhecêssemos há dez anos atrás

e a ignorância diverte os que têm a inteligência de a usar para o bem deles e de
[todos     menos dos outros
e os outros somos nós
os outros somos sempre nós          porque a felicidade é só para uns
a felicidade é só para um e          às vezes          nem a esse chega

e agora põe-se a questão         
agarras o panfleto que te dão na rua?         
agarras?        
agarras
podes agarrar
podes ler
e no fim de ler só porque sabes ler vais ler segunda vez só para tentar entender
e à terceira vais entender mesmo
e à quarta vais entender como os outros
e à quinta vais entender como tu
e à sexta vais-te entender tão bem que não vais precisar de ler mais nada
mas não vais deitar o papel fora
vais guardá-lo para ler de vez em quando
só para teres a certeza que ainda o podes deitar fora          se quiseres muito
e um dia vais pegar no texto de papel que já decoraste e vais gritá-lo aos ouvidos do
[rapaz que os distribui         
sabes que o rapaz que os distribui não percebeu bem o que estava lá escrito
se percebesse o que estava lá escrito não os distribuía
e tu gritas-lhe aos ouvidos a mensagem que lhe suja as mãos          mas ele não quer
[saber
e é por não querer saber que quer muito que os outros o saibam
quer muito que os outros saibam de cor como tu sabes
mas tu sabes de cor todas as cores
todos os lados
a frente e o verso
a espessura
as orelhas do caderno
o avião de papel que voa pela sala

e a luta é essa          é contra nós
não é preciso sabermos muito mais
é só preciso sabermos muito bem
muito bem mesmo
saber as reentrâncias das nossas convicções como as covinhas do rosto que
[esticamos ao espelho quando estamos numa de reflectir

para acabar de vez com a ignorância é preciso ler devagar e muitas vezes como só os
[burros sabem fazer
como só os grandes sabem fazer
como só os génios sabem fazer

poema do livro "luto lento" de João Negreiros


segunda-feira, 21 de julho de 2014

o antes da primeira luz

adoro esta hora
quando a noite perde a virgindade e os bêbados começam a arrepender-se das primeiras juras do escuro

adoro esta hora em que os ratos voltam para casa          e as pessoas também
adoro esta hora em que o desconforto traz a beleza do incómodo que nos acorda a todos os que estivemos acordados

adoro as pegadas dos homens do lixo que levaram as dúvidas que havia sobre a podridão que emprestou a alma à cidade

adoro que esta gente se esqueça quem é e que pergunte que horas são com olhos de quem não quer saber porque as ideias se foram com a noite          e as novas só com a manhã

adoro os padeiros que sabem ao pão
adoro a esperança de um dia novo quando alguém se esvai em sangue na viela que fica bem para além do esquecimento

adoro o limbo onde estão os carapins dos recém-nascidos
que é onde nós guardamos as culpas que queremos ver clareadas
maquilhadas de inocência como a nossa senhora que viu tudo na boite night and day e que não vai contar nada a ninguém

adoro o rio que anda mais devagar
adoro o mar que desagua ligeiramente mais gentil
adoro os cães acabrunhados entre o uivo e o suspiro
e os funcionários do matadouro que sonham com o último grito
adoro as paixões e os comércios que correm mal
adoro as peixeiras que limpam lágrimas ao avental das escamas
adoro os meninos que estão de férias e que se viram para o outro lado para não verem o pai levantar-se do outro lado da mãe


adoro o Sol por ainda não ser e a terra por ainda estar cá

Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Bom trabalho - de "O Manual da Felicidade "

Eu acho que devo ser fascista… ou então acho que sou neoliberal… ou liberalista… ou essas coisas que dizem os comentadores políticos antes que eu mude para o programa de renovações de casas… que eu estou tão cansada que não tenho pachorra para pensar nisso. Eu faço o que me mandam e não penso.
No outro dia dei 4 horas a mais à empresa. Não me pagaram horas extraordinárias, a verdade é que não foram extraordinárias, se calhar foi por isso que não pagaram.
Um amigo comunista disse que eu era fascista e por isso comecei a dizer que devo ser fascista. Depois até fui à Wikipédia para ver o que era o fascista. Apareceu o Hitler e não percebi nada. Depois ele lá explicou melhor, disse que eu apoiava o fascista e que o fascista era o meu patrão e que eu não podia ficar 4 horas a mais.
O mais estúpido é que nem sequer me pediram. Falaram para mim meio torto e eu lá me lembrei de um professor ou do meu pai num dia mau e lá fui ficando até ser 4 horas demais.
Quando cheguei a casa não tinha jantado. Tinha comido 3 panikes no bufete e estava mal-disposta. Não sei se os fascistas ou se os neo-liberais comem panikes mas se vir um digo-lhe que não coma dos de creme de ovos, deu-me uma volta à barriga.
Deitei-me na cama sem trocar de roupa. Ainda liguei a televisão e dei de comer à cadela mas do resto já nem me lembro.
Naquele dia trabalhei 12 horas, dormi 8, 4 foram para os transportes.
Não aguento mais o liberalismo e o fascismo e essas merdas.
Eu preciso de dormir, comer, telefonar à minha mãe, dar uma volta com a cadela e guardar tempo para quando tiver namorado.
Se os comunistas dormem mais e comem melhor, quero ser comunista como o meu amigo.
Eu não percebo nada de política e às vezes, quando me dão indicações na estrada, confundo a esquerda com a direita, mas preciso de dormir, de comer, de ter tempo para mim, de ter tempo para os meus, de ter horas para sair e de ter quem me pague o que trabalhar a mais.
Da próxima vez que o meu patrão, que eu não conheço porque é uma multinacional, me pedir para ficar mais tempo a dar dinheiro a quem já tem demais digo-lhe assim:
- Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá, rega-me as plantas, liga à minha mãe, depois ao meu pai. Espero que encontres o regador, espero que a minha mãe não se assuste nem chame a polícia, espero que o meu pai não te assuste quando for lá partir-te os cornos por invadires a minha casa. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Não te esqueças de passear a cadela. Não te esqueças de pôr o lixo lá fora. Não te esqueças de fazer o jantar. Espero que a cadela não te estranhe e não te desfaça, é uma labrador preta e grande e pode desfazer-te se achar que não és exactamente como eu. Espero que o lixo não te suje as mãos e que a água da lata de cogumelos não se verta nas tuas calças. Espero que te saiba bem o meu jantar e que encontres à primeira as panelas, os copos e os pratos. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá e vive por mim que isto aqui não é vida. Isto aqui não é vida.
O patrão olha para mim estupefacto e eu continuo:
- Pronto, deixa estar, tu não ias querer a minha vida. Não vale a pena incomodares-te.
Levo a chave de minha casa e o trabalho que não fiz hoje fica aqui para fazer amanhã ou depois.
Se tens pressa vai adiantando o serviço durante a noite que eu amanhã cedo trago uma pessoa nova, sã e feliz para te ajudar.

Bom trabalho.

Texto do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Agora - "O Manual da Felicidade"

Ando farto de mim, farto de mim, farto. A minha vida é um puto dum frete pegado. Estou farto de tudo, de mim, de tudo. Farto como quem tem fome. Farto como quem não tem o que lhe falta. Farto como o que falta fazer. Deve haver coisas de que gosto com certeza, e pessoas de quem gosto com certeza, e sítios onde gosto de estar com certeza. Mas não sei o que são, não sei quem são, nem sei onde é.
Sou um carneiro. Eu sou um carneiro. Vou por onde mandam. Vou onde calha. Se eu soubesse exactamente as coisas de que gosto era feliz com elas agora, pegava nelas embevecido agora, rebolava com elas agora ficava horas especado a olhar para elas agora, mas não sei. Olho à volta e vejo tudo, mas em tudo não sei o que é. Aprendi a gostar de tudo e agora estou farto. Tudo é coisas a mais.
Se eu soubesse exactamente as pessoas de que gosto era feliz com elas agora, pegava nelas embevecido agora, rebolava com elas agora, ficava horas especado a olhar para elas agora, mas não sei. Olho à volta e vejo todas, mas de todas não sei quais são. Aprendi a gostar de todas e agora estou farto. Todas é gente a mais.
Se eu soubesse exactamente os sítios de que gosto era feliz neles agora, pégadas neles embevecido agora, rebolava neles agora, ficava horas especado a olhar para eles agora, mas não sei. Olho à volta e vejo todos, mas em todos não sei o que é são. Aprendi a gostar de todos e agora estou farto. Todos são sítios a mais. Tudo é demais. Todas são demais. Todos são demais.
Se me conhecesse e gostasse de me saber sabia o que me sabia bem, sabia o que era bom para mim. Paro o texto, o raciocínio, a auto-crítica, o bom, o mau, o mais e o menos. Paro o certo, o errado e descubro neste momento em mim as coisas que me fazem bem, as pessoas que me fazem bom e os sítios que me fazem homem.
É um momento eterno e instantâneo e só demora o que for preciso e muda agora a minha vida e o meu caminho. E é tão nítido. E é tão óbvio.
Como é que eu nunca tinha pensado nisto, neste, aqui? Como é que eu nunca pensei nisto, nesta, ali? Penso agora e é tão fácil. Agora conheço-me. Um homem só se conhece verdadeiramente quando sabe exactamente o que o faz feliz. Tornei-me num agora.
Foi mesmo agora. Foi mesmo agora.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

domingo, 13 de julho de 2014

Era para se chamar patinhas mas como cheirava muito a cão chamou-se Pivete - d' "O Manual da Felicidade"

Eu quero mostrar que gosto das pessoas que gosto. Eu quero mostrar que amo as pessoas que amo. Apanhei o vício desde “não me lembro” de tratar os maus com bondade e os bons com a mesma coisa, mas nunca me pareceu justo.
Houve uma altura em que não os distinguia bem, não distinguia bem os maus dos bons. Entretanto conheci uns bons que me ajudaram a perceber melhor.
Os bons… não quer dizer que sejam bons… quer dizer que são os bons para mim.
Apanhei o vício da vergonha e agora tenho dificuldade em dar beijos, tenho dificuldade em dar abraços e, pior ainda, tenho dificuldade em dar chi-corações. Gostava tanto de saber dar chi-corações. Quando der chi-corações serei um homem a sério porque nesse momento não terei medo de ser menos homem por isso. Choro muito sozinho e gostava de chorar acompanhado. No dia em que conseguir chorar acompanhado vou ficar tão feliz que, se calhar, nunca mais choro.
Estes problemas são assim porque eu confio pouco no Homem. Quando digo homem refiro-me ao Homem com H grande, apesar de sempre ter confiado mais nas mulheres por causa da minha mãe e de uma criada que eu tinha… e de um tio mau… e de um pai que nem sempre estava.
Há uns tempos comecei a confiar nas pessoas como confio nos cães. Eu confiava muito no Pivete porque era o meu cão e porque roubava uvas comigo. E se fossemos apanhados ladrava, mas não se chibava. Eu com o Pivete… eu com o Pivete… gostava de ser com as gajas como era com o Pivete. Ao Pivete dava beijos com língua sem problemas. Às gajas às vezes tinha dificuldades. Tinha que ser mesmo muito linda. Ao Pivete beijava-o mesmo que ele andasse a mexer no lixo e cheirasse aos restos do jantar de terça-feira.
Um dia vou conseguir abraçar os bons como abraçava o bom do meu cão. Esse dia até vai ser hoje só porque não tenho tempo para continuar desconfiado. Vou dar à humanidade, quando digo humanidade refiro-me às pessoas que gostam de mim, uma nova oportunidade. Vou dar à humanidade uma oportunidade… e depois darei uma segunda oportunidade… e uma terceira até ao infinito… porque agora sei que há gente boa no mundo. Sem hesitar, sem gaguejar, sem tropeçar…vou a direito espetar um beijo em quem gosto e se me derem um estalo ainda me rio por cima, como fazia com o Pivete quando ele me rosnava porque eu lhe mexia na gamela.
Vou dizer ao meu pai que o amo, mesmo que ele comece a pensar que eu sou rabeta. Vou dizer à minha mãe que a amo, mesmo que ela pense que estou maluco. Vou dizer aos meus amigos que os amo, mesmo que eles já saibam. Aos cães que for encontrando, direi o mesmo que dizia ao Pivete: “busca!”.

O meu cão ensinou-me o amor, mas como quase nunca se punha de pé, não aprendi o amor dos Homens.

Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Dose da fatia de um doce

Dá-me um bocadinho do teu amor          todos os dias
Não mo dês todo hoje            que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei            conheço-me bem
e nesse aspecto            sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho                        para que o teu amor me dure até ao fim da vida


poema do livro "o cheiro da sombra das flores" de João Negreiros

domingo, 6 de julho de 2014

O que a humanidade precisa

Na luta diária de me compreender faço grandes esforços para não me levar a mal a crueldade de me achar pior que o resto da população mundial           que é uma horda de imbecis

que ainda assim          de uma forma ou outra            são melhores que eu       muito melhores que eu

até eu que sou eu          sou melhor que eu
por isso é fácil perceber a peçonha que a minha identidade encerra
eu sou o pior ser           o que quase não foi
devia competir com outras espécies numa prova físico-atlético-emocional             para ser humilhado por uma barata      uma tainha      uma amiba

sim          porque até um ser unicelular tem uma célula melhor que qualquer uma das minhas
que sou a vergonha da cara de todos os mal encarados           os que se envergonham por minha causa

e quando cantam sozinhos à noite porque o rádio avariou é por minha causa
e  quando a mãe lhes nega o leite porque secou junto com as lágrimas é por minha causa
e quando não podem falar porque deixaram que alguém dissesse que não tinham voz é por minha causa

e quando se espancam                       para depois se arrependerem                        e se espancarem de novo           e se arrependerem de novo          e se espancarem de novo        e se arrependerem de novo         e se espancarem de velho              e se arrependerem de velho          e espancarem um morto        e por aí fora
é por minha causa
é por minha causa
quando lhe falta causa é por minha causa
e se lhes pergunto porquê só sabem duas respostas
porque sim           e matam-me a sangue frio
e porque não            e matam-me a sangue frio
que as injecções letais ficam para quem se porta bem e não faz perguntas
mas eu pergunto
pergunto apesar de saber
mas quero ouvir-lhes a voz
quero conhecer a cara do meu assassino antes de morrer
como o cego que apalpa o rosto de um mudo para o poder ouvir
quero beijar-lhe a boca e dizer que o amo          para que algum do fel adoce
talvez lhe lembre um namorado antigo que se vestiu de espanhola pelo Carnaval
talvez lhe lembre a casa dos avós
os pombos na praça
talvez o quebre um pouco
talvez o afrouxe
o que a humanidade precisa é disso          é de afrouxar um pouco
e acima de tudo           de me tratar melhor
de me ajudar a atravessar a rua
de me dar canja quando estou doente
e de me deixar fazê-la quando estiver bom
o que todas as pessoas necessitam urgentemente é de me tratar com carinho
e como eu sou qualquer um de vocês
como eu sou o homem           a mulher           a criança          e o velho

todos nós        e todos vocês              vamos ser            felizes

poema do livro "o cheiro da sombra das flores" de João Negreiros


terça-feira, 1 de julho de 2014

O calendário da barbearia

Um dia vou fazer a cama todos os dias
só não sei como vou meter todos os dias dentro de um dia só
talvez no Verão
quando os dias forem maiores
eles verão quando os dias forem melhores
que vai estar fofa e a cheirar bem
e até a fronha de que ninguém gosta vai ter a pele macia
como o rabo de um velhinho que não arrancou os meses do calendário      porque fazia colecção
e porque a folha que vinha antes do Outono trazia uma menina nua que ele queria para si
só gostava daquela
não queria uma data delas
queria a que estava naquela folha
despida e em top less
ela nova e antiga
ele velho e sedoso

naquele dia longo que nunca vai acabar
porque o sol nunca se põe
            o sol nunca se põe
            está feito com eles

poema do livro "o cheiro da sombra das flores" de João Negreiros