segunda-feira, 28 de julho de 2014

para acabar de vez com a ignorância

a ignorância fascina-me porque me dá a sensação de que é sempre possível ser mais
[estúpido
e muitas vezes é na estupidez que reencontramos a nossa humanidade
é como dizeres          dei aqui um jeito que nem consigo mexer as pernas
e sem saberes estás paraplégico
e o saberes traz-te a dor que não conhecias porque não sentias as pernas         e
[agora passaste a sentir que morreram
é como quando começas a falar com palavras que não são tuas
mas que te foram emprestadas por uma cartilha ou um panfleto que te deram na rua
aí começas a esquecer o que fica do pescoço para cima e a dar a todos          menos
[a ti          a capacidade de te criarem à sua semelhança          como um Deus em [segunda mão

e moldam-nos como barro
e moldam-nos com o berro que nos recria para desrespeitar o miúdo que já fomos e que
[mataríamos sem hesitar se nos conhecêssemos há dez anos atrás

e a ignorância diverte os que têm a inteligência de a usar para o bem deles e de
[todos     menos dos outros
e os outros somos nós
os outros somos sempre nós          porque a felicidade é só para uns
a felicidade é só para um e          às vezes          nem a esse chega

e agora põe-se a questão         
agarras o panfleto que te dão na rua?         
agarras?        
agarras
podes agarrar
podes ler
e no fim de ler só porque sabes ler vais ler segunda vez só para tentar entender
e à terceira vais entender mesmo
e à quarta vais entender como os outros
e à quinta vais entender como tu
e à sexta vais-te entender tão bem que não vais precisar de ler mais nada
mas não vais deitar o papel fora
vais guardá-lo para ler de vez em quando
só para teres a certeza que ainda o podes deitar fora          se quiseres muito
e um dia vais pegar no texto de papel que já decoraste e vais gritá-lo aos ouvidos do
[rapaz que os distribui         
sabes que o rapaz que os distribui não percebeu bem o que estava lá escrito
se percebesse o que estava lá escrito não os distribuía
e tu gritas-lhe aos ouvidos a mensagem que lhe suja as mãos          mas ele não quer
[saber
e é por não querer saber que quer muito que os outros o saibam
quer muito que os outros saibam de cor como tu sabes
mas tu sabes de cor todas as cores
todos os lados
a frente e o verso
a espessura
as orelhas do caderno
o avião de papel que voa pela sala

e a luta é essa          é contra nós
não é preciso sabermos muito mais
é só preciso sabermos muito bem
muito bem mesmo
saber as reentrâncias das nossas convicções como as covinhas do rosto que
[esticamos ao espelho quando estamos numa de reflectir

para acabar de vez com a ignorância é preciso ler devagar e muitas vezes como só os
[burros sabem fazer
como só os grandes sabem fazer
como só os génios sabem fazer

poema do livro "luto lento" de João Negreiros


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