a
ignorância fascina-me porque me dá a sensação de que é sempre possível ser mais
[estúpido
e
muitas vezes é na estupidez que reencontramos a nossa humanidade
é
como dizeres dei aqui um jeito
que nem consigo mexer as pernas
e
sem saberes estás paraplégico
e
o saberes traz-te a dor que não conhecias porque não sentias as pernas e
[agora passaste a sentir que morreram
é
como quando começas a falar com palavras que não são tuas
mas
que te foram emprestadas por uma cartilha ou um panfleto que te deram na rua
aí
começas a esquecer o que fica do pescoço para cima e a dar a todos menos
[a ti a capacidade de te criarem à sua
semelhança como um Deus em [segunda
mão
e moldam-nos como barro
e moldam-nos com o berro que nos recria para
desrespeitar o miúdo que já fomos e que
[mataríamos sem hesitar
se nos conhecêssemos há dez anos atrás
e
a ignorância diverte os que têm a inteligência de a usar para o bem deles e de
[todos menos dos outros
e
os outros somos nós
os
outros somos sempre nós porque a
felicidade é só para uns
a
felicidade é só para um e às
vezes nem a esse chega
e
agora põe-se a questão
agarras
o panfleto que te dão na rua?
agarras?
agarras
podes
agarrar
podes
ler
e
no fim de ler só porque sabes ler vais ler segunda vez só para tentar entender
e
à terceira vais entender mesmo
e
à quarta vais entender como os outros
e
à quinta vais entender como tu
e
à sexta vais-te entender tão bem que não vais precisar de ler mais nada
mas
não vais deitar o papel fora
vais
guardá-lo para ler de vez em quando
só
para teres a certeza que ainda o podes deitar fora se quiseres muito
e
um dia vais pegar no texto de papel que já decoraste e vais gritá-lo aos
ouvidos do
[rapaz que os distribui
sabes que o rapaz que os distribui não percebeu
bem o que estava lá escrito
se percebesse o que estava lá escrito não os
distribuía
e
tu gritas-lhe aos ouvidos a mensagem que lhe suja as mãos mas ele não quer
[saber
e
é por não querer saber que quer muito que os outros o saibam
quer
muito que os outros saibam de cor como tu sabes
mas
tu sabes de cor todas as cores
todos
os lados
a
frente e o verso
a
espessura
as
orelhas do caderno
o
avião de papel que voa pela sala
e
a luta é essa é contra nós
não
é preciso sabermos muito mais
é
só preciso sabermos muito bem
muito
bem mesmo
saber
as reentrâncias das nossas convicções como as covinhas do rosto que
[esticamos ao espelho quando estamos numa
de reflectir
para
acabar de vez com a ignorância é preciso ler devagar e muitas vezes como só os
[burros sabem fazer
como
só os grandes sabem fazer
como
só os génios sabem fazer
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