adoro esta hora
quando a noite perde a virgindade e os bêbados começam a
arrepender-se das primeiras juras
do escuro
adoro esta hora em que os ratos voltam para casa e as pessoas também
adoro esta hora em que o desconforto traz a beleza do
incómodo que nos acorda a todos os
que estivemos acordados
adoro as pegadas dos homens do lixo que levaram as dúvidas
que havia sobre a podridão
que emprestou a alma à cidade
adoro que esta gente se esqueça quem é e que pergunte que
horas são com olhos de quem
não quer saber porque as ideias se foram com a noite e as novas só com a manhã
adoro os padeiros que sabem ao pão
adoro a esperança de um dia novo quando alguém se esvai em
sangue na viela que fica bem
para além do esquecimento
adoro o limbo onde estão os carapins dos recém-nascidos
que é onde nós guardamos as culpas que queremos ver clareadas
maquilhadas de inocência como a nossa senhora que viu tudo na
boite night and day e que
não vai contar nada a ninguém
adoro o rio que anda mais devagar
adoro o mar que desagua ligeiramente mais gentil
adoro os cães acabrunhados entre o uivo e o suspiro
e os funcionários do matadouro que sonham com o último grito
adoro as paixões e os comércios que correm mal
adoro as peixeiras que limpam lágrimas ao avental das escamas
adoro os meninos que estão de férias e que se viram para o
outro lado para não verem o pai
levantar-se do outro lado da mãe
adoro o Sol por ainda não ser e a terra por ainda estar cá
Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros
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