Eu quero
mostrar que gosto das pessoas que gosto. Eu quero mostrar que amo as pessoas
que amo. Apanhei o vício desde “não me lembro” de tratar os maus com bondade e
os bons com a mesma coisa, mas nunca me pareceu justo.
Houve uma
altura em que não os distinguia bem, não distinguia bem os maus dos bons.
Entretanto conheci uns bons que me ajudaram a perceber melhor.
Os bons…
não quer dizer que sejam bons… quer dizer que são os bons para mim.
Apanhei o
vício da vergonha e agora tenho dificuldade em dar beijos, tenho dificuldade em
dar abraços e, pior ainda, tenho dificuldade em dar chi-corações. Gostava tanto
de saber dar chi-corações. Quando der chi-corações serei um homem a sério
porque nesse momento não terei medo de ser menos homem por isso. Choro muito
sozinho e gostava de chorar acompanhado. No dia em que conseguir chorar
acompanhado vou ficar tão feliz que, se calhar, nunca mais choro.
Estes
problemas são assim porque eu confio pouco no Homem. Quando digo homem
refiro-me ao Homem com H grande, apesar de sempre ter confiado mais nas
mulheres por causa da minha mãe e de uma criada que eu tinha… e de um tio mau…
e de um pai que nem sempre estava.
Há uns tempos
comecei a confiar nas pessoas como confio nos cães. Eu confiava muito no Pivete
porque era o meu cão e porque roubava uvas comigo. E se fossemos apanhados
ladrava, mas não se chibava. Eu com o Pivete… eu com o Pivete… gostava de ser
com as gajas como era com o Pivete. Ao Pivete dava beijos com língua sem
problemas. Às gajas às vezes tinha dificuldades. Tinha que ser mesmo muito
linda. Ao Pivete beijava-o mesmo que ele andasse a mexer no lixo e cheirasse
aos restos do jantar de terça-feira.
Um dia vou
conseguir abraçar os bons como abraçava o bom do meu cão. Esse dia até vai ser
hoje só porque não tenho tempo para continuar desconfiado. Vou dar à humanidade,
quando digo humanidade refiro-me às pessoas que gostam de mim, uma nova
oportunidade. Vou dar à humanidade uma oportunidade… e depois darei uma segunda
oportunidade… e uma terceira até ao infinito… porque agora sei que há gente boa
no mundo. Sem hesitar, sem gaguejar, sem tropeçar…vou a direito espetar um
beijo em quem gosto e se me derem um estalo ainda me rio por cima, como fazia
com o Pivete quando ele me rosnava porque eu lhe mexia na gamela.
Vou dizer
ao meu pai que o amo, mesmo que ele comece a pensar que eu sou rabeta. Vou
dizer à minha mãe que a amo, mesmo que ela pense que estou maluco. Vou dizer
aos meus amigos que os amo, mesmo que eles já saibam. Aos cães que for
encontrando, direi o mesmo que dizia ao Pivete: “busca!”.
O meu cão
ensinou-me o amor, mas como quase nunca se punha de pé, não aprendi o amor dos
Homens.
Texto de "O Manual da Felicidade" de João Negreiros
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