Eu acho que devo ser
fascista… ou então acho que sou neoliberal… ou liberalista… ou essas coisas
que dizem os comentadores políticos antes que eu mude para o programa de
renovações de casas… que eu estou tão cansada que não tenho pachorra para
pensar nisso. Eu faço o que me mandam e não penso.
No outro dia dei 4 horas a mais à empresa. Não
me pagaram horas extraordinárias, a verdade é que não foram extraordinárias, se
calhar foi por isso que não pagaram.
Um amigo comunista disse que eu era fascista e
por isso comecei a dizer que devo ser fascista. Depois até fui à Wikipédia para
ver o que era o fascista. Apareceu o Hitler e não percebi nada. Depois ele lá
explicou melhor, disse que eu apoiava o fascista e que o fascista era o meu
patrão e que eu não podia ficar 4 horas a mais.
O mais estúpido é que nem
sequer me pediram. Falaram para mim meio torto e eu lá me lembrei de um
professor ou do meu pai num dia mau e lá fui ficando até ser 4 horas demais.
Quando cheguei a casa não
tinha jantado. Tinha comido 3 panikes no bufete e estava mal-disposta. Não sei
se os fascistas ou se os neo-liberais comem panikes mas se vir um digo-lhe que
não coma dos de creme de ovos, deu-me uma volta à barriga.
Deitei-me na cama sem trocar
de roupa. Ainda liguei a televisão e dei de comer à cadela mas do resto já nem
me lembro.
Naquele dia trabalhei 12
horas, dormi 8, 4 foram para os transportes.
Não aguento mais o
liberalismo e o fascismo e essas merdas.
Eu preciso de dormir, comer,
telefonar à minha mãe, dar uma volta com a cadela e guardar tempo para quando
tiver namorado.
Se os comunistas dormem mais
e comem melhor, quero ser comunista como o meu amigo.
Eu não percebo nada de política e às vezes,
quando me dão indicações na estrada, confundo a esquerda com a direita, mas
preciso de dormir, de comer, de ter tempo para mim, de ter tempo para os meus,
de ter horas para sair e de ter quem me pague o que trabalhar a mais.
Da próxima vez que o meu
patrão, que eu não conheço porque é uma multinacional, me pedir para ficar mais
tempo a dar dinheiro a quem já tem demais digo-lhe assim:
- Pega, aqui
tens a chave de minha casa. Vai lá, rega-me as plantas, liga à minha mãe,
depois ao meu pai. Espero que encontres o regador, espero que a minha mãe não
se assuste nem chame a polícia, espero que o meu pai não te assuste quando for
lá partir-te os cornos por invadires a minha casa. Pega, aqui tens a chave de
minha casa. Não te esqueças de passear a cadela. Não te esqueças de pôr o lixo
lá fora. Não te esqueças de fazer o jantar. Espero que a cadela não te estranhe
e não te desfaça, é uma labrador preta e grande e pode desfazer-te se achar que
não és exactamente como eu. Espero que o lixo não te suje as mãos e que a água
da lata de cogumelos não se verta nas tuas calças. Espero que te saiba bem o
meu jantar e que encontres à primeira as panelas, os copos e os pratos. Pega,
aqui tens a chave de minha casa. Vai lá e vive por mim que isto aqui não é
vida. Isto aqui não é vida.
O patrão olha para mim
estupefacto e eu continuo:
- Pronto, deixa
estar, tu não ias querer a minha vida. Não vale a pena incomodares-te.
Levo a chave de minha casa e
o trabalho que não fiz hoje fica aqui para fazer amanhã ou depois.
Se tens pressa vai
adiantando o serviço durante a noite que eu amanhã cedo trago uma pessoa nova,
sã e feliz para te ajudar.
Bom trabalho.
Texto do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros
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