sexta-feira, 18 de julho de 2014

Bom trabalho - de "O Manual da Felicidade "

Eu acho que devo ser fascista… ou então acho que sou neoliberal… ou liberalista… ou essas coisas que dizem os comentadores políticos antes que eu mude para o programa de renovações de casas… que eu estou tão cansada que não tenho pachorra para pensar nisso. Eu faço o que me mandam e não penso.
No outro dia dei 4 horas a mais à empresa. Não me pagaram horas extraordinárias, a verdade é que não foram extraordinárias, se calhar foi por isso que não pagaram.
Um amigo comunista disse que eu era fascista e por isso comecei a dizer que devo ser fascista. Depois até fui à Wikipédia para ver o que era o fascista. Apareceu o Hitler e não percebi nada. Depois ele lá explicou melhor, disse que eu apoiava o fascista e que o fascista era o meu patrão e que eu não podia ficar 4 horas a mais.
O mais estúpido é que nem sequer me pediram. Falaram para mim meio torto e eu lá me lembrei de um professor ou do meu pai num dia mau e lá fui ficando até ser 4 horas demais.
Quando cheguei a casa não tinha jantado. Tinha comido 3 panikes no bufete e estava mal-disposta. Não sei se os fascistas ou se os neo-liberais comem panikes mas se vir um digo-lhe que não coma dos de creme de ovos, deu-me uma volta à barriga.
Deitei-me na cama sem trocar de roupa. Ainda liguei a televisão e dei de comer à cadela mas do resto já nem me lembro.
Naquele dia trabalhei 12 horas, dormi 8, 4 foram para os transportes.
Não aguento mais o liberalismo e o fascismo e essas merdas.
Eu preciso de dormir, comer, telefonar à minha mãe, dar uma volta com a cadela e guardar tempo para quando tiver namorado.
Se os comunistas dormem mais e comem melhor, quero ser comunista como o meu amigo.
Eu não percebo nada de política e às vezes, quando me dão indicações na estrada, confundo a esquerda com a direita, mas preciso de dormir, de comer, de ter tempo para mim, de ter tempo para os meus, de ter horas para sair e de ter quem me pague o que trabalhar a mais.
Da próxima vez que o meu patrão, que eu não conheço porque é uma multinacional, me pedir para ficar mais tempo a dar dinheiro a quem já tem demais digo-lhe assim:
- Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá, rega-me as plantas, liga à minha mãe, depois ao meu pai. Espero que encontres o regador, espero que a minha mãe não se assuste nem chame a polícia, espero que o meu pai não te assuste quando for lá partir-te os cornos por invadires a minha casa. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Não te esqueças de passear a cadela. Não te esqueças de pôr o lixo lá fora. Não te esqueças de fazer o jantar. Espero que a cadela não te estranhe e não te desfaça, é uma labrador preta e grande e pode desfazer-te se achar que não és exactamente como eu. Espero que o lixo não te suje as mãos e que a água da lata de cogumelos não se verta nas tuas calças. Espero que te saiba bem o meu jantar e que encontres à primeira as panelas, os copos e os pratos. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá e vive por mim que isto aqui não é vida. Isto aqui não é vida.
O patrão olha para mim estupefacto e eu continuo:
- Pronto, deixa estar, tu não ias querer a minha vida. Não vale a pena incomodares-te.
Levo a chave de minha casa e o trabalho que não fiz hoje fica aqui para fazer amanhã ou depois.
Se tens pressa vai adiantando o serviço durante a noite que eu amanhã cedo trago uma pessoa nova, sã e feliz para te ajudar.

Bom trabalho.

Texto do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

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