A casa tem saudades dos que
lá estiveram mas tenta não se lembrar deles. Foi a maneira que arranjou de
evitar um sentimento que desmoronasse. A casa é
muito inteligente. Tenta encolher as arestas onde se possa esconder maldade.
Tenta arredondar bicos de mobília, tenta comer borbotos que piquem em almofadas
fofas, tenta engolir o pó que faça as pessoas tossir impropérios. A casa é muito
inteligente e faz tudo para evitar o destino, o destino é destituído e não quer
saber mas a casa há-de manter-se de pé, lutando por um futuro melhor. Se as
pessoas e os bichos e as plantas que são a vida não evitam a maldade, porque
não hão-de os objectos inanimados tentar a sua sorte? Porque não? Porque não?
Porque não? Porque não? Os colchões em roupa interior vão para as varandas já
secas e apreciam a vista que o pudor permite. A Primavera tosse um líquido
viscoso por todos os orifícios e vê-se morrer e a secar para dar lugar a algo
melhor e mais radiante. As escadas descem-se melhor sem poeiras. Tapetes feitos
de muito tempo conversam pendurados numa corda de estendal e copos de pé que
estão por decoração são lavados com o detergente a tomar as vezes do álcool.
Passarinhos pousam no recheio lá fora e tecem considerações pelo progresso não
ter vindo por aquelas bandas dar conta deles e de tudo o resto. Depois as
almofadas, lençóis, fronhas, colchas e toalhas fazem uma viagem em filas de
cestos até à lavandaria e nela conversam sobre a actualidade. Como passaram a
vida em gavetas, as conversas são curtas e inexistentes. Cheira a lavado. O
cheiro a lavado, para quem é da cidade, pode ser facilmente confundido com
Primavera, natureza, ar puro, felicidade ou algo muito bom para sobremesa.
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