domingo, 20 de abril de 2014

Excerto d' "O Sol Morreu Aqui"

A casa tem saudades dos que lá estiveram mas tenta não se lembrar deles. Foi a maneira que arranjou de evitar um sentimento que desmoronasse. A casa é muito inteligente. Tenta encolher as arestas onde se possa esconder maldade. Tenta arredondar bicos de mobília, tenta comer borbotos que piquem em almofadas fofas, tenta engolir o pó que faça as pessoas tossir impropérios. A casa é muito inteligente e faz tudo para evitar o destino, o destino é destituído e não quer saber mas a casa há-de manter-se de pé, lutando por um futuro melhor. Se as pessoas e os bichos e as plantas que são a vida não evitam a maldade, porque não hão-de os objectos inanimados tentar a sua sorte? Porque não? Porque não? Porque não? Porque não? Os colchões em roupa interior vão para as varandas já secas e apreciam a vista que o pudor permite. A Primavera tosse um líquido viscoso por todos os orifícios e vê-se morrer e a secar para dar lugar a algo melhor e mais radiante. As escadas descem-se melhor sem poeiras. Tapetes feitos de muito tempo conversam pendurados numa corda de estendal e copos de pé que estão por decoração são lavados com o detergente a tomar as vezes do álcool. Passarinhos pousam no recheio lá fora e tecem considerações pelo progresso não ter vindo por aquelas bandas dar conta deles e de tudo o resto. Depois as almofadas, lençóis, fronhas, colchas e toalhas fazem uma viagem em filas de cestos até à lavandaria e nela conversam sobre a actualidade. Como passaram a vida em gavetas, as conversas são curtas e inexistentes. Cheira a lavado. O cheiro a lavado, para quem é da cidade, pode ser facilmente confundido com Primavera, natureza, ar puro, felicidade ou algo muito bom para sobremesa.



Excerto do livro “O Sol Morreu Aqui” vencedor do prémio literário internacional Dias de Melo de 2012. 

Sem comentários:

Enviar um comentário