domingo, 2 de novembro de 2014

a terra da verdade

eu só queria que o mundo fosse de toda a gente
de todos
dos bons
dos maus
e dos outros
gostava que o mundo pertencesse aos vivos
mas que os mortos também o pudessem visitar
não em dias marcados
mas nos dias em que lhes apetecesse aparecer
que o dia de finados é muito curto para lembrar os que foram para a terra da verdade

eu queria que o mundo fosse de toda a gente
de todos
dos belos
dos feios
e dos outros
dos outros que tu só sabes se são se os conheceres bem          até lá adivinhas-lhes a 
[beleza          espreitas-lhes a fealdade

e depois há aqueles que nos poupam o trabalho          são feios à partida ou belos 
[à partida
e aí é muito fácil           
não temos que perder tempo a ouvir o que dizem e a ver o que fazem
são bonitos e pronto
são feios e pronto

e aos bonitos damos tudo
abrimos-lhes a porta da nossa casa
as casas da nossa camisa
e          no fim          casamos com eles
e depois percebemos que já é tarde demais
e que ficaram pançudos
e perderam o cabelo e a moral
se bem que isso é um pormenor
os feios também nos poupam trabalho          mas por outro lado dão-nos muito

e quando os dizemos          dizemos eles porque são todos iguais
quando batemos          batemos neles porque são todos iguais
quando matamos          matamos neles o que é nosso
e eles depois já não voltam
vão para a terra da verdade
e quando nos perguntam se fomos nós          mentimos
e o mundo é de todos          mas tem dias
o mundo é nosso e dos outros também
e é bem melhor ser dono de alguma coisa do que também ser dono de alguma coisa
o também significa que nos deixam estar
que até nem lhes causa qualquer tipo de transtorno o facto de respirarmos
mas o facto de respirar faz-me ficar aflito porque o ar que me inunda as narinas não é 
[meu          é deles
e eles são belos e eu não
e o meu ar é emprestado
e é só por uns dias porque um dia vou ter que o devolver
e a minha vida vai ficar mais rarefeita
e vou ser um asmático no topo de uma montanha com muito frio
com muito sono
e recosto-me
e abraço o boneco de neve que me jurou fidelidade eterna
e adormeço no quente do gelo          e pronto
e agora o mundo tem dias em que posso voltar e fazer uma visita
e todos são bons para mim
e todos dizem que eu não merecia o meu destino          mas o ar está caro
o mundo devia ser de todos          mas a verdade é que foi feito apenas para os que 
[respiram
e só os outros conhecem a verdade
a verdade está e estará sempre na boca de um defunto que nunca esteve para nascer

poema do livro "luto lento" de João Negreiros


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