Poema inédito de João Negreiros.
Realização - Tiago Ferreira Marques; Interpretação - Cátia Cunha e Silva
Co-produção de Teatro Universitário do Minho e Bolor Teatro
a família
amamos
os pais mais quando morrem
amamos
os pais mais porque foram o que nós repetimos um pouco
amamos
os pais mais na fuga para a frente
os
pais são-no na retaguarda
o
pai que se substitui ao filho é um filho
amamos
o tio mais pelo que nunca poderá sentir por nossa mãe
amamos
os irmãos mais pelo que poderíamos ter sido
amamos
um primo mais por não ser o irmão e queríamos que fosse por não ser
amamos
mais os presentes de Natal que pedimos enquanto esperávamos por outros
amamos
mais os anos bons dos álbuns que inventaram para substituir memórias
sou
um cacto da cidade
seco
porque me regam
percebo
os sinais do medo
sou
o que esperavam de mim quando me pedem
dou-lhes
partes complicadas por pudor de me perceberem
acabei
mesmo há duas horas de fritar um panado
também
comi uns ovos
não
fiz arroz nem massa
lambi
o pacote que ia a meio das batatas fritas
estavam
moles
velhas
e
já vinham frias à nascença
a
cozinha cheira mal
não
tomo banho há três dias
vou
dizer que o meu cabelo tem tendência para ser oleoso
há
mais papéis aqui do que era preciso
morreu
um pássaro na varanda
se
não recebesse tanta publicidade a vida seria melhor
acordei
depois do sol porque dormi atrasado
dói-me
tudo
acho
que ainda há chocolates do Natal
fico
contente por este ano não me terem dado dos de licor
odeio
os de licor
quando
era miúdo quase vomitei com um
senti
que tinham inventado um veneno só para mim
mas
depois a minha tia comeu o que sobrou do que quase vomitei e percebi que era mesmo
assim
tenho
uma tempestade para acalmar
a
minha miúda tem medo de trovões e por isso nunca esteve
há
lixo a mais hoje
estão
para chegar
vou
entrar em pânico por cinco minutos e depois descanso
vou
aos sovacos com desodorizante e às partes com perfume
o
bidé está muito frio
o
lavatório é lá longe e chove
a
banheira ia molhar-me todo
vai
ter mesmo de ser assim
chuto
para debaixo da cama tudo até caber
quando
cabe é porque não cabe
abro
as janelas
estava
quase para cegar mas arrependi-me porque não havia luz lá fora
vou
pôr a televisão mais longe da cama para ninguém ver que estou míope
hei-de
morrer sem óculos e com o cabelo todo para adiar o que puder na mente de todos
se
ao menos esta louça fosse de papel
se
ao menos tivesse comido da sertã a escorrer
se
ao menos o bolor do frigorífico fizesse algumas concessões
luto
contra tudo o que tenho contra mim e estou a perder
amamos
os que amamos mais por obrigação
hoje
ficaram de vir
a
casa cheira a mijo
ainda
bem que não consigo ter um cão
vou
vestir a roupa por cima do pijama
se
ao menos o aquecedor estivesse por dentro da roupa
há
um jantar de família à minha espera
devia
descongelar qualquer coisa por caridade mas as pegas são só para o fogão
amo-os
tanto e não sei dar-lhes de comer
não
tenho nada no frigorífico que não os mate num ápice
há
coisas para escorregar por todo o lado
vou
ficar sem família e dar meu corpo para adopção
a
campainha tocou
dispo-me
eles
merecem que me dispa
com
a vontade de chorar não lhes digo que esperem
dispo-me
mais
dispo-me
mais ainda
líquido
no chuveiro
eles
merecem
estou
a morrer com esta chuva
não
há gel de banho
vou
à deriva ao outro lado buscar o sabonete do bidé
volto
eles
merecem
amo-os
porque merecem
tenho
a família à espera
lavo-me
tenho
a família à espera
seco-me
tenho
a família à espera
visto-me
tenho
a família à espera
calço-me
tenho
a família à espera
tenho
a família à espera
tenho
a família à espera
chego
à porta
abro
a porta
fecho
a porta
já não estão
poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros
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