sexta-feira, 1 de junho de 2012

Prémio do Concurso Poético do Cancioneiro Infanto-Juvenil


“Agridoce” – poema do livro “luto lento” premiado e publicado no Cancioneiro Infanto-Juvenil para a Língua Portuguesa



agridoce

no caminho da escola para casa há uma senhora que vende gomas aos rapazes que passam sem camisa

e são doces e baratas

e quando chegam à boca deixam de ser gomas e passam a ser um sorriso

um sorriso daqueles que o Sol não tem porque é tão quente que o derreteu          vertendo-se para os 

desenhos das crianças

e a senhora tem um banquinho tapado pelas saias grandes

e          como ninguém o vê          quando ela se senta parece que flutua

e os rebuçados são magia

e a senhora vende na rua nos dias de sol

e nos de nevoeiro não a vemos mas ela está lá

e nos de frio não a sentimos com os dedos mas ela está lá

quando chove é que não

a porta está fechada

o banco está molhado e sozinho

e espreito debaixo dele para ver se ela deixou alguma coisa para mim          mas não deixou

e volto para casa com o sorriso do Sol ao contrário                  

com a chuva ácida no intervalo das lágrimas doces          que vos queria tanto          mas não podia ser      
que derretiam com a água          diz a senhora

eu não percebo como é que eles não derretem com o Sol do céu          com o Sol dos lábios e derretem com a água fria

e tenho a boca azeda          deve ser da gripe ou do remédio

e dizem que a chuva é boa por causa dos agricultores

e eu não percebo          mas se calhar percebo

a senhora das gomas dos agricultores deve ter um guarda-chuva muito grande e a minha não

e dizem que a chuva é boa porque os doces me fazem mal aos dentes

e eu não percebo          mas se calhar percebo

a chuva é boa porque não sabe a nada e o que não sabe a nada é azedo

e o nada faz-me bem

e o amargo faz-me bem

e a tristeza faz-me bem

e a chuva faz-me bem

e a rua deserta faz-me bem

e a lágrima que me chove dos olhos à boca faz-me bem                       

não estar aqui ninguém faz-me bem

e o doce é o demónio

a chuva é do senhor

o calor vem do inferno

e a senhora é uma bruxa

e tem razão quem diz

e não tem quem dá

e o que é bom é mau

e o que é mau faz bem

e a casa está tão longe

e o doce que é tão perto vai ficar para amanhã

porque amanhã vem o Sol

amanhã regressa o Sol

desta vez com um sorriso


poema do livro "luto lento" de João Negreiros



O Cancioneiro Infanto-Juvenil Para a Língua Portuguesa é uma iniciativa do Instituto Piaget que pretende estimular a criatividade poética entre as crianças e os jovens de todos os países de língua portuguesa. Em simultâneo, o Cancioneiro Infanto-Juvenil tem como objectivo reintroduzir a dimensão poética no sistema educativo e cultural.

Ao longo da sua existência o projecto conta já com 13 mil participantes. Desde a primeira edição, há cerca de 20 anos, o projecto tem construído um valioso percurso de descoberta da linguagem poética, culminando na publicação dos melhores trabalhos apresentados a concurso.

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