“Agridoce” – poema do livro “luto lento” premiado e publicado no Cancioneiro Infanto-Juvenil para a Língua Portuguesa
agridoce
no caminho da escola para casa há uma senhora que
vende gomas aos rapazes que passam sem camisa
e são doces e baratas
e quando chegam à boca deixam de ser gomas e
passam a ser um sorriso
um sorriso daqueles que o Sol não tem porque é tão
quente que o derreteu vertendo-se
para os
desenhos das crianças
e a senhora tem um banquinho tapado pelas saias
grandes
e
como ninguém o vê quando
ela se senta parece que flutua
e os rebuçados são magia
e a senhora vende na rua nos dias de sol
e nos de nevoeiro não a vemos mas ela está lá
e nos de frio não a sentimos com os dedos mas ela
está lá
quando chove é que não
a porta está fechada
o banco está molhado e sozinho
e espreito debaixo dele para ver se ela deixou
alguma coisa para mim mas não
deixou
e volto para casa com o sorriso do Sol ao
contrário
com a chuva ácida no intervalo das lágrimas
doces que vos queria tanto mas não podia ser
que derretiam
com a água diz a senhora
eu não percebo como é que eles não derretem com o
Sol do céu com o Sol dos lábios
e derretem com a água fria
e tenho a boca azeda deve ser da gripe ou do remédio
e dizem que a chuva é boa por causa dos
agricultores
e eu não percebo mas se calhar percebo
a senhora das gomas dos agricultores deve ter um
guarda-chuva muito grande e a minha não
e dizem que a chuva é boa porque os doces me fazem
mal aos dentes
e eu não percebo mas se calhar percebo
a chuva é boa porque não sabe a nada e o que não
sabe a nada é azedo
e o nada faz-me bem
e o amargo faz-me bem
e a tristeza faz-me bem
e a chuva faz-me bem
e a rua deserta
faz-me bem
e a lágrima que me
chove dos olhos à boca faz-me bem
não estar aqui
ninguém faz-me bem
e o doce é o demónio
a chuva é do senhor
o calor vem do inferno
e a senhora é uma bruxa
e tem razão quem diz
e não tem quem dá
e o que é bom é mau
e o que é mau faz bem
e a casa está tão longe
e o doce que é tão perto vai ficar para amanhã
porque amanhã vem o Sol
amanhã regressa o Sol
desta vez com um sorriso
poema do livro "luto lento" de João Negreiros
O Cancioneiro Infanto-Juvenil Para a Língua Portuguesa é uma iniciativa do Instituto Piaget que pretende estimular a criatividade poética entre as crianças e os jovens de todos os países de língua portuguesa. Em simultâneo, o Cancioneiro Infanto-Juvenil tem como objectivo reintroduzir a dimensão poética no sistema educativo e cultural.
Ao longo da sua existência o projecto conta já com 13 mil participantes. Desde a primeira edição, há cerca de 20 anos, o projecto tem construído um valioso percurso de descoberta da linguagem poética, culminando na publicação dos melhores trabalhos apresentados a concurso.
Parabéns!...
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