quinta-feira, 26 de julho de 2012

o órfão de segunda vez


a senhora que mora na casa em frente nem sempre está à janela
às vezes está à porta          e outras está dentro dela

a velhota que vive junto a minha casa
tem um cão chamado Teobaldo
que com latidos me arrasa
enquanto a velha faz o caldo

e ouço-lhe a máquina de costura
sinto-lhe o ponto de caramelo
quando lhe dá para a doçura
leva à rua o xaile mais belo

e mora sempre sozinha
a única visita sou eu
que a espreito como se fosse minha
até que ela se derreteu

e a casa está para alugar
porque a cortina já não se mexe
mas quando à janela voltar
vou-lhe dizer          por favor desce

indago-lhe porque some
não faça isso          então e eu?
depois pergunto-lhe o nome
e ela responde que morreu

podias ter sido minha avó
ó minha querida avozinha
eu moinho e tu a mó
a que me dava a farinha

e eu não gosto do cão
só o tolero por ser órfão

e a casa que fica em frente à tua
não é uma casa e está nua

e a família que estava comigo
nunca chegou a aparecer
deixa-me ser teu amigo
e o caramelo derreter

é que a senhora que vive ali não está sempre lá
mas eu juro que já a vi nos dias em que não está

poema do livro "luto lento" de João Negreiros


3 comentários:

  1. Conheci há bem pouco este seu blog, João, e passei a segui-lo.
    Pretendo ler na íntegra o que de sua obra aqui se acha compartilhado.
    Fico-me por ora com este "o órfão de segunda vez", de leitura degustativa.
    Meus cumprimentos.

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