segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

"Código postal" - poema do livro "o cheiro da sombra das flores"


Código postal

As paredes desta casa já viram tudo

o sono

a fome

e um tambor perdido no meio da batalha

viram inquilinos fugir à pressa          e a treva que os ladrões trouxeram

as bulhas que desaguaram em carícias

as portas que bateram por conta do vento          e as janelas que partiram por conta de nada

mas cada vez que um vinha e entrava          dava a todos esta morada

e o correio trazia para o mesmo destinatário as cartas de amor de quem já não mora aqui

e eu não quero saber

abro-as e leio-as como se fossem minhas          como se fossem tuas

e violo-lhes a correspondência como se fosses tu

esqueço a letra e os erros de ortografia e imagino que me escreves todos os dias

e quando perguntam se mora aqui a dona Augusta

eu digo que sim          que sou eu

o senhor Gustavo?

sim          sou eu

o doutor Américo?

é o meu pai

a dona Lourdes?

é a minha mãe

a Maria de Fátima?

é minha filha

e o correio não faz perguntas porque sabe que não se deve perguntar nada a um homem apaixonado

e então faço de conta que os nomes sou eu

tapo o remetente          imagino-te o nome          e abro-a para sentir o teu perfume

e a carta começa assim

excelentíssimo senhor          e eu traduzo para           meu querido

e depois continua com

venho por este meio          e eu traduzo para          amo-te mais que a vida

e a carta do tribunal com aviso de recepção do homem que morava aqui e que não pagava a renda é a prova inequívoca de que me amas

todo aquele papaguear jurídico são longas descrições do país exótico onde vives exilada

é por isso que não podes vir

é por isso que não podes escrever          não te deixam

por isso escreves em código na pena dos que partiram

com cartas de tribunal e contas da luz antigas para me alumiar a esperança          pedindo-me que espere

e sempre que o telefone toca e é engano          és tu

quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela          és tu

quando buzinam na rua          és tu

quando as crianças cantam lá fora         é para te anunciar

eu sei

não tardas

estás para chegar

e quando chegares vais pedir desculpa pelo atraso

e vais dizer que fomos feitos um para o outro           e que a vida agora vai correr bem

e vais ser linda          e dar-me beijos quentes como um abafo para as orelhas

e vamos viver nesta casa um perpétuo amor          uma vida perfeita

sem nada que nos interrompa

e quando o carteiro chegar e fizer perguntas

dizemos que a dona Augusta não sou eu

dizemos que o senhor Gustavo não sou eu

que o doutor Américo era o meu pai mas morreu

que a dona Lourdes era minha mãe mas também se foi logo a seguir com o desgosto

que a Maria de Fátima          a minha pequenina de um casamento antigo          foi com a mãe para a Suíça

e que aqui moramos nós

sem história

sem família

sem passado

nesta paz que não existe

neste amor que nunca foi          mas que é para sempre

Poema do livro "o cheiro da sombra das flores" à venda em livrrias

7 comentários:

  1. Estou sem palavras e não sei porquê com lágrimas nos olhos.
    Obrigada por escreveres tão bem, João.
    Sempre fã.

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  2. João... Sempre serei sua fã...

    Ensinou-me a gostar de poesia e a amar o teatro...
    Obrigada...
    Elda Costa

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  3. Belo, como sempre. abraço.

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  4. Uma prova de que "a gente inventa as coisas que ama"...
    Ou não.
    Gostei muito. Um beijo.

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  5. Olá João. Eu estudo letras e no meu curso de literatura eu tinha que fazer um trabalho sobre literatura em movimento, achei seu Blog, li suas poesias e gostei muito, e resolvi fazer meu trabalho sobre você, suas criações literárias. Gostaria de saber como tudo começou, quando e porque você decidiu seguir como escritor etc. Ansiosa aguardo sua resposta.

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