As paredes desta casa já viram tudo
o sono
a fome
e um tambor perdido no meio da batalha
viram inquilinos fugir à pressa e a treva que os ladrões trouxeram
as bulhas que desaguaram em carícias
as portas que bateram por conta do vento e as janelas que partiram por conta de nada
mas cada vez que um vinha e entrava dava a todos esta morada
e o correio trazia para o mesmo destinatário as cartas de amor de quem já não mora aqui
e eu não quero saber
abro-as e leio-as como se fossem minhas como se fossem tuas
e violo-lhes a correspondência como se fosses tu
esqueço a letra e os erros de ortografia e imagino que me escreves todos os dias
e quando perguntam se mora aqui a dona Augusta
eu digo que sim que sou eu
o senhor Gustavo?
sim sou eu
o doutor Américo?
é o meu pai
a dona Lourdes?
é a minha mãe
a Maria de Fátima?
é minha filha
e o correio não faz perguntas porque sabe que não se deve perguntar nada a um homem apaixonado
e então faço de conta que os nomes sou eu
tapo o remetente imagino-te o nome e abro-a para sentir o teu perfume
e a carta começa assim
excelentíssimo senhor e eu traduzo para meu querido
e depois continua com
venho por este meio e eu traduzo para amo-te mais que a vida
e a carta do tribunal com aviso de recepção do homem que morava aqui e que não pagava a renda é a prova inequívoca de que me amas
todo aquele papaguear jurídico são longas descrições do país exótico onde vives exilada
é por isso que não podes vir
é por isso que não podes escrever não te deixam
por isso escreves em código na pena dos que partiram
com cartas de tribunal e contas da luz antigas para me alumiar a esperança pedindo-me que espere
e sempre que o telefone toca e é engano és tu
quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela és tu
quando buzinam na rua és tu
quando as crianças cantam lá fora é para te anunciar
eu sei
não tardas
estás para chegar
e quando chegares vais pedir desculpa pelo atraso
e vais dizer que fomos feitos um para o outro e que a vida agora vai correr bem
e vais ser linda e dar-me beijos quentes como um abafo para as orelhas
e vamos viver nesta casa um perpétuo amor uma vida perfeita
sem nada que nos interrompa
e quando o carteiro chegar e fizer perguntas
dizemos que a dona Augusta não sou eu
dizemos que o senhor Gustavo não sou eu
que o doutor Américo era o meu pai mas morreu
que a dona Lourdes era minha mãe mas também se foi logo a seguir com o desgosto
que a Maria de Fátima a minha pequenina de um casamento antigo foi com a mãe para a Suíça
e que aqui moramos nós
sem história
sem família
sem passado
nesta paz que não existe
neste amor que nunca foi mas que é para sempre
Poema do livro "o cheiro da sombra das flores" à venda em livrrias
Estou sem palavras e não sei porquê com lágrimas nos olhos.
ResponderEliminarObrigada por escreveres tão bem, João.
Sempre fã.
João... Sempre serei sua fã...
ResponderEliminarEnsinou-me a gostar de poesia e a amar o teatro...
Obrigada...
Elda Costa
Magnifico!
ResponderEliminarBjs dos Alpes
Belo, como sempre. abraço.
ResponderEliminarGostei mesmo muito. Parabéns!...
ResponderEliminarUma prova de que "a gente inventa as coisas que ama"...
ResponderEliminarOu não.
Gostei muito. Um beijo.
Olá João. Eu estudo letras e no meu curso de literatura eu tinha que fazer um trabalho sobre literatura em movimento, achei seu Blog, li suas poesias e gostei muito, e resolvi fazer meu trabalho sobre você, suas criações literárias. Gostaria de saber como tudo começou, quando e porque você decidiu seguir como escritor etc. Ansiosa aguardo sua resposta.
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