domingo, 2 de janeiro de 2011

A bolacha do sortido

Querem-me comer a carne que já não é tenra, não por fome… mas por sede.
Querem-me a seu lado como o braço da cadeira de ferro que serve para torturar crianças que não dizem a verdade. Elas só sabem que a verdade é a mentira possível… não pode estar a acontecer, não devia, ninguém queria, ninguém sonhou com isto, ninguém fez nada para que acontecesse… então… porque acontece sempre se ninguém quer? Exactamente, acontece sempre exactamente por ninguém querer. É que o que nós imploramos que não seja dá aos nossos receios a força do papo que temos na mão, o que o enfermeiro não se atreve a lancetar porque sabe que nesse monte está um mar de pus e escuro que vai inundar a aldeia e arrastar o celeiro até à estrada, alimentando as vias do mundo de um trigo molhado e doente que devora os anseios e os laços.
Há que deixar o real e encontrar refúgio na mente, na mentira doce que fugiu para a caixa de sortido inglês esquecida no sótão. Dá-me uma bolacha, como uma bolacha. Dá-me uma bolacha, trinco uma bolacha. Dá-me uma bolacha, lambo uma bolacha. Dá-me uma bolacha, quero outra bolacha. Dá-me uma bolacha, esta é de chocolate. Dá-me uma bolacha, esta tem a cobertura vermelha dos morangos. Dá-me uma bolacha, a que gostares mais que eu rilho-lhe as arestas a pensar em ti. Dá-me uma bolacha até me fazeres cheio. Até me deixares alegre do açúcar… e a sós com o universo que não está para além da caixa e que, por isso mesmo, é infinito… porque a caixa do sortido tem camadas, plataformas, andares e, por baixo, tem mais igual, por baixo tem mais igual e nunca iremos passar a fome dos que andam na neve como nos programas especiais de Natal à procura da mamã que vão confundir com uma figurante que não nos conhece e que, depois de gravar, vai comer um jantar caseiro feito no micro-ondas enquanto fala com dois gatos. A caixa não terá fim, vamos tirar os fatos do Carnaval de 82, quando fomos de esquilo para combater o frio e deixar que as calorias nos dêem calor. Está-se bem no sótão, não tem porta e a escada de caracol que vem cá dar anda devagarinho. Já vamos na septuagésima oitava camada, estou prestes a morrer de felicidade mas a solidão faz-me companhia, tu és a companhia por não me contrariares… por me acabares as frases que quero conhecer no fim.
O fato de esquilo faz-me as orelhas arrebitadas e a cauda que não tenho, tu fazes-me companhia como a água que sabe a cloro.
O sótão faz-me tecto para não ver como o céu é injusto.
As pessoas fazem-me falta… e mal… e eu não as quero conhecer porque à distância percebo-as melhor com óculo do que perto com binóculo. E, quando próximos por me verem, mudam os costumes e transformam-se como as máquinas a caminho da sucata, as que deitam tudo por fora e nos inundam a casa, fazendo o curto-circuito que nos encurta o sono e o sonho. As pessoas dão-me o sono de fugir a trote sem a diligência do cocheiro.
Queres ficar cá em cima, mesmo que lá em baixo toque a porta com os nós? Queres fazer-me a companhia dos soldados mortos?
Queres mais ternura sem canela? Queres mais uma camada de sortido? A bolacha do sortido…
 A migalha mais rápida que o esquilo vai cair entre o pescoço e a gola e roçar todo o corpo até ao mínimo pé.

Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros

1 comentário:

  1. As migalhas que se (des)fazem bolachas.
    Belo o texto.
    Doce o açucar da bolacha desejada, mas não esmigalhada nem degustada.
    Terna a poesia em pose de prosa, dum poeta que cresce todos os dias.

    (E que eu leio sem que ele saiba. Sabe agora :-)...........a b.o.l.a.c.h.a.s de gengibre.

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