Estou a falar contigo e tu não ouves porque és
um imbecil. E eu continuo a falar contigo e tu finges que ouves porque és um
imbecil. Parei de falar contigo e tu finges que ouviste porque és um imbecil.
Agora é a tua vez: estás a falar comigo e eu
não ouço porque sou um imbecil. Continuas a falar comigo e eu finjo que ouço
porque sou um imbecil.
Não nos zangamos por isso. Somos amigos e, os
amigos, aqueles que são mesmo amigos, não se ouvem porque não se conhecem… e
não se conhecem porque a amizade é tão profunda e tão visceral que se sobrepõe
a todo e qualquer tipo de discurso, a toda e qualquer tipo de opinião porque a
amizade está acima de tudo.
Se um amigo meu for um bandalho não deixa de
ser um bandalho por ser meu amigo, mas a meus olhos será sempre o meu bandalho,
nunca o dos outros. E tem muito mais valor o meu bandalho, o meu imbecil, do
que a melhor e mais caridosa pessoa do mundo, se esta não for minha. O que quer
dizer que o que nós temos é bom mesmo que seja mau… e a melhor maneira de
mantermos tudo o que nos rodeia realmente bom é não conhecermos nada.
Os meus amigos são uns imbecis mas eu não sei…
e por isso não são.
Eu sou um imbecil mas não sei… e por isso não
sou.
A minha casa cheira a merda mas eu não sei… e
por isso não cheira.
A minha namorada é um bisonte mas eu não lhe
dou beijos… e por isso não sei.
O meu pai tem uma amante mas a minha mãe sabe
mas, como finge que não sabe, eu também finjo que sei que ela não sabe… e a
amante finge que é casada com o meu pai e eu nem sequer tenho que fingir que
sou filho dela.
E o meu cão é de raça, só que é feio e está-lhe
a cair o pêlo… e os vizinhos dizem que é rafeiro mas eu finjo que é arraçado,
até falo com ele em inglês… e ele não percebe mas eu finjo que ele percebe e
falo à mesma porque sou um imbecil… e o meu cão também tem que ser porque é
meu.
O desconhecimento e a ignorância são as únicas
e verdadeiras armas da evolução humana e o truque da socialização é não ouvir
ninguém, à excepção da nossa voz interior que é rouca. Assim, através deste
sistema de valorização pessoal, poderemos fazer de todas as pessoas que nos
rodeiam seres magnânimos e perfeitos. Melhor, no dicionário colocaremos como
sinónimo de magnânimo e perfeito todas as pessoas que, na realidade, são
acometidas de uma dose industrial de imbecilidade.
Desta forma uma grande percentagem da
humanidade poderá vir a ser magnânima e perfeita sem sequer se dar ao trabalho
de evoluir ontologicamente, basta que continuem a não ouvir o que todos os
outros dizem de forma a conseguirem manter-se na absoluta ignorância, o que
será profundamente bom porque a ignorância é o veículo para o verdadeiro
desenvolvimento e, através do verdadeiro desenvolvimento, todos nós, num futuro
eminentemente próximo, poderemos vir a ser uns idiotas chapados.
Esse tem que ser o objectivo de todos pela
simples razão de ser o único, o mais imediato e, diga-se de passagem, o único
objectivo realmente exequível.
Poema do livro "luto lento" de João Negreiros
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