segunda-feira, 11 de outubro de 2010

tenho ideia de respirar

tenho ideia de respirar

se ao respirar pensasse faria os dois no mesmo tempo
para perceber que o corpo pede que seja bom para mim

se ao respirar pensasse diria
pára
e o corpo ficava numa apneia que me ganhava o segundo certo de fazer o que estava escrito nas notas do rodapé do papiro do meu destino

se ao respirar pensasse dava vivas à distância entre corpo e espírito
para que as mãos tocassem o mesmo que a pele
o nariz farejasse o mesmo que o olfacto
a boca soubesse ao mesmo que a língua
as orelhas ouvissem o mesmo dos ouvidos
e os olhos vissem o mesmo que a menina

se ao respirar pensasse ia voltando atrás para errar de novo com mais convicção

se ao respirar pensasse dava-me palmadinhas no rosto e imitava-me o desdém por algumas pessoas

se ao respirar pensasse comia menos
falava menos
sofria menos
dormia menos
queria saber menos

se ao respirar pensasse vivia ofegante de tão feliz

se ao respirar pensasse conhecia-me melhor
e achava-me pior
mas seria mais honesto pois tinha de mim a imagem que quem me vê tem

se ao respirar pensasse seria entediante
haveria de cometer os erros premeditados com as pessoas mais previsíveis
e as diabruras sem perdão com as pessoas que me dão pão ao corpo

se ao respirar pensasse soluçava menos e falava mais e evitava a coerência do gesso

o problema desta vida é que          quando a sorvemos         fazemo-lo sem pensar        para não adulterar sabores

o problema desta vida é que só temos tempo para respirar quando pára
e só pára quando morre

e pensar é uma imposição que vamos contrariando

vamos respirar e pensar criando a sensação de que não fazemos nem uma coisa nem outra

e sustenho a respiração
o oxigénio que se vai inspira-me
faz-me melhor
leva o mau que tinha dentro
adia o que tem mesmo que ser

e não respirar dá-me um balão de oxigénio para pagar contas atrasadas
telefonar a um amigo antigo
beber chá com a tia que morreu no cemitério que foi para abater por fazer festas aos mortos
entregar em mãos as cartas para beijar o carteiro
comer pão deixando a côdea
viajar para muito longe e dar as malas ao aeroporto
começar de novo sem saber o quê
alimentar esperanças por quem não gosta de mim
comer o último rissol
fritar o novo primeiro rissol para quem queria comer o último
dar um tempo
lavar os dentes
saber se hoje é sexta-feira ou se é antes pelo contrário
aproveitar a luz do dia para a iluminação pessoal
abrir um precedente
não levantar uma suspeita
errar um caminho
aprender a malha e fazer um cachecol flexível para um pescoço que mexe muito

o céu está mais claro hoje
as pessoas também
sei agora quem sou e dá-me a raiva de não o ter sido antes

hoje aprendi a respirar          pensando paralelamente sem perder a noção da
importância das duas

e a clarividência que isto me dá
este domínio das duas técnicas
faz-me ter menos medo e ter medo mais devagar

hoje respiro no tempo dos pensamentos

e o ar está finalmente dentro de mim até aos poros

in "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros

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