quinta-feira, 23 de setembro de 2010

6º Concurso Poético do Cancioneiro Infanto-Juvenil para a Língua Portuguesa

“quarto crescente” – poema do livro “luto lento” premiado e publicado no Cancioneiro “Amo de Ti”

quarto crescente


vou pintar uma parede de cada cor e encostar-me a cada uma para que cada uma seja o que eu quero construir

mas como só tenho quatro          quatro não chega por isso vou lá para fora imaginar paredes para que se façam muros que eu quero cair          uns altos e até ao tecto que está a fazer de céu

eu quero pintar o ar como quem pinta paredes para sentir os desafios como um ar que se lhe deu

e vou respirar distâncias para as cheirar mais perto

e vou escalar o areado como quem rasga os dedos e ainda assim sorri porque sobe como quem morre

vou pintar o mundo de uma cor única que são todas

e matizar as pessoas com nuances subtis para que sejam coerentes

mas eu vou ficar transparente para que vejam por mim o que eu não quero que dói muito

só que o ar anda racionado e o homem racionalizado

e dizem-me que o não faça          que fique quedo como quem respira só para fazer circular o ar          como o polícia que diz do acidente que aqui não há nada para ver

e fecharam-me à chave

e fecharam-me a chave dentro duma gaveta que está lá fora e lá longe

e estou a fazer pequeníssimos quadrados nas paredes do meu quarto para simular a imensidão do mundo

mas não me chega          falta-me gente          e até pus um anúncio no jornal a pedir gente pequenina em part-time para me inundar as paredes vestidas de quadrados que fazem de muros das casas das pessoas lá fora

e dentro do meu quarto corre bem          corre muito bem porque as cores começaram a intrometer-se nas almas umas das outras

e agora nem são quadrados

são manchas que eu nem distingo          que eu nem percebo          que eu nem sei ao certo

manchas que se misturam como quem nada          que viajam como quem corre

como quem escorre do tecto

como quem escorre do chão ao tecto

como quem escorre de fora para dentro

como quem se entranha

como quem se une

como quem se mune de aventuras e segredos que quiseram ser contados para deixarem de existir

e a perfeição do mundo interior é ter as barreiras simples feitas para cair

e a sua única tristeza são as arestas que choram no canto porque separam a mãe do filho e a solidão da aventura

e ao meu quarto só lhe falta ser circular para ser o mundo          mas lá fora circula

e um dia hei-de sair para dizer a todos que se espalhem ao comprido e debaixo uns dos outros

como quem ama sem saber como

como quem chama sem saber quem

como quem brinca sem saber a quê

e vou-lhes ensinar a verdadeira linguagem dos afectos          que é moldável palpável e daltónica

e o mundo vai ser de uma cor          melhor          o mundo vai ser de duas cores          da minha e da tua

in luto lento, de João Negreiros



O Cancioneiro Infanto-Juvenil Para a Língua Portuguesa é uma iniciativa do Instituto Piaget que pretende estimular a criatividade poética entre as crianças e os jovens de todos os países de língua portuguesa. Em simultâneo, o Cancioneiro Infanto-Juvenil tem como objectivo reintroduzir a dimensão poética no sistema educativo e cultural.

Ao longo da sua existência o projecto conta já com 13 mil participantes. Desde a primeira edição, há cerca de 20 anos, o projecto tem construído um valioso percurso de descoberta da linguagem poética, culminando na publicação dos melhores trabalhos apresentados a concurso.

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