Poema feito à Imagem - "O Murro" from Abraham Tark on Vimeo.
o murro
ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti todos os dentes a quem me disse tal coisa
é que não aguentei
porque não insultou minha mãezinha e seus hábitos conjugais como eu estava à espera?
porque não insultou minha mãezinha afirmando que todos os homens do globo poderiam ser o meu paizinho?
porque não me disse que cheirava mal?
porque não me inventou uma corcunda?
porque não aproveitou conjugando as duas correntes e descreveu minha mãezinha como um ser desprovido de higiene e com protuberâncias dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?
chamar-me a mim razoável?!
eu que sou extraordinário de tão ruim
eu que estou nos pólos com os iões
eu que faço tudo para me destacar
violo meninas em plena avenida para depois salvar o mundo
dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto
mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não gosto
eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade
eu rei dos povos e súbdito dos mendigos
eu sou o contrário do razoável
ninguém me ama com medo de se apaixonar
todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue que se habituou ao cheiro da glória que não se quer render à vida para procriar
eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas
o imperador de palácios vazios
o vagabundo de séquito interminável
a divindade a quem faltam promessas
o risco sem medo
a justiça sem pecador
vivo para lá da lei na origem dos decretos
chamar-me a mim razoável quando sou limpo
sem rasuras
sem razão
chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão aos patos quando o mar está revolto
dá-me antes um murro em plena face resvalando a jeito de me partir o nariz para depois me tratares com curativos pintados de bonecos da infância que estava no armário dos medicamentos
ser razoável é pior que mau
é melhor que bom
e é igual a mais ou menos que é pior que mau
e melhor que bom
e igual a mais ou menos
ser razoável é nem sequer estar
é estar sem querer
é comer sem gosto
é borrar sem cheiro
é morrer sem choro
é cantar sem alma
é estragar o que está precisamente maduro
é esquecer o que acabou de se fazer
é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao infortúnio
ser razoável é ser medíocre e ser medíocre é pior que mau
é melhor que bom
e é igual a qualquer coisa
dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e me lembrar que no extremo está a virtude
nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas
mais pretas
com mais chifres
e mais longe de casa porque abominam o que é doméstico
o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a lamber porque está no fundo da arca para além do rio mais gelado e do pingo do nariz
chamar-me a mim razoável é chamar ao homem selvagem e à mulher mulher dele
chamar-me a mim razoável é chamar a vós também que levais os ouvidos tapados
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que não há hipótese de mudar isto para melhor
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que não há hipótese de mudar isto para pior
chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos que estamos a mudar tudo para mais ou menos
exijam o murro em plena face
gritem pelo murro
façam o abaixo-assinado pelo murro
mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face
recebamo-lo com um sorriso com menos dentes e sangue a escorrer livre
e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto
vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias estratosféricas nas lojas de haute-couture
e na impossibilidade de encontrar o equilíbrio
o conforto
o quentinho
o meio
encontramos a humanidade que é feita de defeitos
amores impossíveis
rotas ocasionais
céus carregados
searas em chama
florestas virgens
assomos de bravura
loucuras temporárias
e tranquilidades passageiras
e tu que levas os dentes partidos só porque alguém não te quis perfeito sabes agora a importância de saber
tu que lavas a boca no chafariz na despedida do incisivo sabes agora ao que vens
ao que venho
ao que vimos
sabes agora que somos
somos tudo
somos completamente tudo
somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se afogarem pela rapidez do rio
Muito bom.
ResponderEliminarParabéns!
gosto de dar e levar estes murros no estômago ... não na cara ,porque desfiguram!
ResponderEliminar.
um beijo
Brutal, nunca vi ninguém representar tão bem como tu. Grande poema, grande actor.
ResponderEliminarForça e vou seguir o teu blog.
Abraço
Luis Gerra
Um poema de perder o fôlego! Fantástico!
ResponderEliminarParabéns sinceros.
Fátima Alendouro
Passei or aqui desconhecia o autor, adorei a escrita num geral, voltarei sempre.
ResponderEliminarParabéns pelo talênto e a força natural das palavras.
Este murro está sublime também gostei em especial do poema Mãe.
Beijos e Bom Domingo
irresistível vir ,de quando em vez ,à fonte ,beber um pouco de água pura
ResponderEliminar.
um beijo ,João
ler a sua poesia e maravilhoso, enche-me de bons sentimentos como coragem,força, ânimo,bondande... vê-lo dizê-la faz-me entrar em transe, esqueço-me de mim e naquele momento sinto tudo como um grande colectivo pelas suas palavras ditas, através delas viajo para um mundo de palavras significantes, palavras emocionantes, medito certamente, chego ao que significam e no seu conjunto, pela sua voz, rosto, boca, sinto-me vazia de tudo, cheia de si e fora de onde estou, por isso venho aqui agora virei mais para exorcizar colateralidades, consigo focalizo, concentro-me e nada mais existe senão as palavras, a emoção, a sua voz, entram em mim procorrem-me e premanecem após uns instantes, a magia da poesia está aqui...virei cá, obrigado pelas palavras e por as partilhar conosco da forma que o faz, a poesia é de todos, para todos
ResponderEliminarPode ser-se razoável, apenas, nos intervalos de nós mesmos.
ResponderEliminar- Haverá quem opte por ser apenas intervalo? -
Abraço
ESTE MURRO... SALVOU MEU DIA!!! QUEM SABE TODA A SEMANA...
ResponderEliminar