sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

ontem estive no inferno


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sabes o que me assustou mais?
foi não ter dado por nada
ontem estive no inferno e não dei por nada porque o que existe lá é o mesmo que existe aqui
ontem estive no inferno e estive mesmo para te chamar
mas achei que não ias querer ver
não tinha nada de novo
e o novo que tinha não era mau o suficiente
era talvez um pouco melhor
um pouco pior
um pouco diferente
mas na essência era o mesmo
o mesmo cheiro
o mesmo sabor
o mesmo som
o mesmo sujo
o mesmo ar
a mesma gente
só que diferente
com roupas rasgadas e esgares de dor
não
espera
o esgar de dor era igualzinho
as roupas
sim
eram diferentes
não
espera
que ontem vi um homem que estava
pois
pois é
nem as roupas
ontem estive no inferno para depois poder contar a todos como é
mas acabei por perder a viagem porque não tenho nada para contar
e o inferno continua
e está a arder nos meus olhos e nos teus também
e nos teus também
e um dia vamos lá parar todos
mas felizmente não vamos sofrer com a diferença
e vamo-nos sentir todos em casa porque a nossa casa é toda a mesma e está a cair como um baralho de cartas que nunca chegou a castelo

ontem estive no inferno e perdi-me lá dentro
e continuo lá
e sei que não vou dar com a maçaneta da porta
e se der não a vou saber rodar
e se a rodar um muro vai tapar a saída
e se o derrubar vai haver um guarda
e se matar o guarda vai haver um homem
e se rasgar o homem vai haver um papel
e não vou ter tesoura
e se tiver tesoura vai aparecer o demónio
e se beijar o demónio na boca e ele me deixar passar para que não conte a ninguém que o amei vai haver um Santo com a inocência ao colo
e não vou ter como o afastar
mas se o Santo perder a inocência e fugir para a procurar eu vou continuar em frente até à próxima barreira que és tu
que eu quero por seres a última
e vou tirar-te à vida devagar
deliciosamente e sem esforço por seres a única e última coisa viva que me impede de encontrar o fim do mundo que é vazio
e magro
e débil
e negro
e seco como o último galgo da corrida
o cão cego que só ganharia se tacteasse o coelho que está no infinito à espera
ontem estive no inferno
ontem estive no inferno
estava lá tudo
estavam lá todos
tu não
tu não
tu não
se estivesses não seria a mesma coisa
in luto lento, de João Negreiros

10 comentários:

  1. As suas palavras cortam-me a respiração. A mim, e a muitas outras pessoas (...ainda bem!). Obrigada por partilhar a sua inteligência, talento e sensibilidade.

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  2. Magnífico inferno este que nos dá a conhecer a sua poesia!

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  3. parabéns pela sensibilidade e intensidade de suas palavras e o modo de expressar-las.
    não sei explicar o porque, mas senti como se estivessem acontecido comigo...
    fiquei admirada com a sua diferenciação, de muitas poesias que já vi por aí!
    beijos, e boa sorte :)

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  4. Belo, profundo e simples...o inferno não é inferno com aquele que a gente ama!

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  5. É uma grande verdade, o amor muda tudo, é só acreditar e relaxar um pouco, tb faz falta. Gostei mto, como sempre

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  6. O poema é uma delícia de ler, com um toque romântico no fim, gostei, parabéns, João, como sempre você arrasa!!! Bjo.

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