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Os filhos dos outros portam-se bem à mesa
Se cada vez que der um gole de água pensar nisso vou ter de pensar em muitas outras coisas e isso leva-me, a pouco e pouco, a pensar em tudo. Então, em vez de ser um ser, vou ser uma fábrica de ângulos… de pontos de vista que não vão estar certos porque vão ser só mais uma unidade que faz parte das múltiplas possibilidades de análise que rodeiam a nossa vida e a vida dos que nos rodeiam.
A loucura, ou o início dela, é isso, é o momento em que começamos a pensar… a partir daí é sempre a cair de forma sossegada como quem engole chicletes na montanha russa. A loucura é a incapacidade que temos de parar de pensar.
A loucura é o som que nunca ouvimos até ouvirmos, a pessoa que não temíamos até tremermos, a corrente que levávamos no pescoço até sabermos que era de ar… e dá-nos um arrepio daqueles… ou um dos outros… se decidirmos entrar na vida de outra pessoa e analisar a infelicidade pelo ponto de vista de alguém a quem não conhecíamos as maleitas… até passarmos a conhecer. E, quando damos conta, contamos-lhes as dívidas e os trocos, sabemos-lhes os defeitos e as injúrias de alcofa, beijamos-lhes os filhos como nossos, o sangue como morcegos, a sina como ciganos e nós somos eles… e todos.
Mas, quando nos aborrecemos, voltamos para casa… para deixar de sofrer muito com a vida dos outros e passamos a sofrer um bocadinho com os nossos. É que os nossos filhos são mais feios… a nossa mulher é mais gorda… os nossos pais estão menos mortos… os problemas dos outros, dos outros que fazem parte da raça sem sermos nós, são nobres, os outros são heróicos, os outros passam na televisão, os outros choram sem soltar ranho, morrem sem borrar as calças… e as dívidas de jogo são porque tiveram um descuido, uma hesitação, uma fraqueza… nós não…. nós somos descuidados, hesitantes, fracos e nós não gostamos nem um pouco de nós porque queremos passar as tardes em casa do resto da raça a ajudar a raça a sentir-se melhor com ela própria. Nós queremos passar as tardes a jogar às cartas em casa do resto da raça humana e elogiar-lhes as cortinas… e os dentinhos de leite dos rebentos… enquanto os nossos filhos crescem órfãos, os nossos irmãos não nos conhecem, os nossos pais morrem de solidão nos asilos, os nossos cães morrem à fome no beco do caminho para as férias… e a nossa empregada não recebe subsídio de Natal… e o nosso peixe não tem quem lhe mude a água… e a nossa roupa fede porque não quisemos tomar banho. E por isso tudo fedemos a falhanço e levamos eternamente o rosto da derrota dos que se deixaram ficar… dos que não gostam de si… nem do que sai de si…
E que é feito de si?... está com tão bom aspecto… e a sua senhora… está boazinha?… há que tempos que não os via…
in "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros
O retrato de um "bom" português.
ResponderEliminarJoão Negreiros tem o dom de escrever estes pequenos grandes pormenores.
Multiplica-te se faz favor!
Caraças... tu és mesmo bom! E eu que nunca gostei deste tido de prosa poética, porque se prestava muito à incontinência de palavras de quem delas tinha de sobejo... mas tu... o teu divagar é só aparente. Os teus textos dissecam o mais intrínseco da alma humana, com tudo o que isso tem de idiossincrático...
ResponderEliminarJoão,apenas sei que gosto e você escreve de forma que toca a alma.Desejo-lhe inspiração renovada em cada novo dia.beijoss com carinho.Lia...
ResponderEliminarGostei muito desta tua prosa poética joão. Aliás, gosto muito de toda a tua escrita.
ResponderEliminarUm bem hajas.
Abraço.
Apetece gritar "arrangem uma vida para viver e deixem as dos outros em paz..." e gritei um dia na sala dos professores.... claro que a partir desse dia deixei de ter "boa saúde".
ResponderEliminarRetrato fiel da nossa sociedade e mais as suas conversas cricri (crianças e criadas)
bj
1 aventura às cegas. A hora da verdade - tempo de terror e reverência e ao mesmo tempo. "A Noite Negra da Alma" desencadeia a vitória sobre aspectos devoradores do inconsciente. Se não há a vitória, há o que chamamos "psicose". Um enfrentamento dessa natureza pressagia morte espititual ou renascimento. A ambiguidade, é... que só na região do maior terror se encontra o áureo tesouro. (Cada um sabe de seu próprio medo quando está na outra face da Lua - Mater - o símbolo.
ResponderEliminarEncantamento>Ameaça. Só pros heróis a "lacrimae lunae", orvalho que nutre e retempera a vida sobre a Terra ( a realidade ). Graças ao desvelo da Lua, nada se perde para o herói ( o homem ).
Não nos iluminamos imaginando figuras de luz, porém, tornando consciente a escuridão.
Da Lua para a Terra:
"Que estás fazendo, Terra, no céu?
Diz-me, que estás fazendo, Silenciosa Terra?" _ Giuseppe Ungaretti.
Perdoa ter me alongado. Mas seu texto animou.
(Ânima)
Obrigada.
De repente a gente se encontra no face.
Parabéns Amigo.
ResponderEliminarSempre a surpreenderes pela positiva.