domingo, 2 de agosto de 2009

canção ao emigrante


a sombra para além dos dias é a lembrança de ontem e o poder não haver amanhã

levo numa mala coisas simples para voltar e sei exactamente a quem pertencem

levo-as numa de devolver e guardo-as com a mão dos dedos todos para que não esqueça porque vou

sei ainda de cor os passos para casa e só penso no inverso quando me arremesso à frente

tenho de passar daqui para lá sem ir desta para melhor

há partes de mim feitas à mão que não passam na alfândega e maravilhas escondidas que vou ter que declarar

vou para longe para ser visto de relance pelos olhos frios da certeza da parada das tropas

sou o viajante
o camionista
o forasteiro
o astronauta
o emigrante
o país
o sem-abrigo
o que vai agora aprender a falar
o que vai agora aprender a comer
o que vai para a sombra ver melhor
o que não sabe ao que vai
sei o regresso e fujo ao passado entre os dedos juntos

oxalá não se esqueçam de mim
o neto da nau catrineta
o bisneto do Deus nos livre
o marujo à cabra cega

fiz a mala mais pequena que havia com o couro das costas
e tenho dores nelas quando vos aperto nas mãos

fui fazer um país novo e encontrei o que já lá estava
dei um adeus a ver se voltava porque não sabia até já na outra língua
e por isso fiquei mais tempo

espero voltar
espero um dia
espero que baixe à terra um bilhete de avião
espero por ver maior a foto tipo passe-vite que me amarrotou o transparente da carteira

espero por um dia mais novo          comigo mais velho a falar mau português com o carinho todo que tiver

João Negreiros

11 comentários:

  1. Este poema é lindo... muito familiar ainda que não seja a canção da vida inteira! A sério.. um dia se puder e não me emocionar tanto como hoje gostava muito de o dizer! =) (sim , emocionou-me...) quando leio este poema vejo o meu pai. e cada palavra do poema é uma dele mas versão mais bonita! e mais evidente e mais próxima! mais próxima!
    é ...obrigado joão... acho que vou transcrever o poema e enviar um pombo correio, como diz um amigo meu;)
    Beijinhos
    Dina

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  2. Ai querida Toupas, se soubesses a força que tens dentro... andavas com ela cá fora.

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  3. Caro João

    Sou o Luís Ismael e precisava de conversar contigo sobre um projecto que está a ser desenvolvido na Lightbox.
    Pf envia o teu contacto para mail@lightbox.pt

    Obrigado.

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  4. Especial...

    Ve o meu blog, se poesia romanceada neste novo mundo, visto sob uns olhos de mulher puramente, tristemente, loucamente, constantemente, apaixonada puder interessar a ti, Poeta.

    www.estrelaemsepia.blogspot.com

    Escrevi um livro também... "O Eco da Vida", Papiro Editora... Quem sabe se o lêsses...

    Até já...
    Beijinho

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  5. "Vivencias"
    "A minha vida"
    "Fácil seria"
    "Espero-te sempre"
    "Desabafo"
    ...

    Talvez gostes desses... Procura absorve los...

    Adorei ouvir-te a declamar.

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  6. Obrigado pelas palavras tão gentis, Mintaka. Parabéns pelo blog. Grande abraço.

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  7. Oh, como compreendo as tuas palavras, como as sinto em todo o meu ser, até ao mais intimo de mim.
    Apenas os que se aventuram entenderão o verdadeiro sentimento do que é ser emigrante.
    Obrigada, João!

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  8. É-se sempre aquele que parte, mesmo que seja apenas de si mesmo.
    Lindo...como os outros que tenho lido e acompanhado.
    Tenho um livro (poesia)que me foi aconselhado por uma amiga...e já coloquei aguns poemas na Teia (o meu blog).
    Parabéns.

    :)

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  9. João Negreiros

    Parabéns um poema lindo. E infelizmente muito actual.

    Não, não és piroso mas sim muito sensível.

    Bem hajas

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  10. Como sempre, João, acho fantástico e admiro muito como consegues pôr em palavras sentimentos tão universais e que nos dizem tanto. Pessoalmente, sinto metade do que ai está escrito, migrei para fora, cá dentro.

    Parabéns e obrigada por aquilo que escreves!

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