terça-feira, 16 de setembro de 2014

Quais são as probabilidades?

Quais são as probabilidades de um raio me fulminar? Quais são as probabilidades se eu for para junto de uma árvore e gritar para que ele me queime? E se me cobrir de metal… ou se quiser muito? Será que é por querer muito que as probabilidades aumentam? Se calhar não, se calhar querer muito aumenta as probabilidades de se conseguir absolutamente nada porque o menino que não procura senta-se sempre em cima do ovo da Páscoa e o que procura, à chuva e ao frio, em vez do ovo vai chocar uma gripe.
E cada um tem o que merece, mas será que os que merecem têm? E se têm… o que têm é aquilo que pediram? Se calhar não porque quando pedimos nunca sabemos o que vamos ter e nunca conhecemos o que desejamos pela simples razão de nunca o termos antes. Exemplo, eu tenho fome e depois dores de barriga, eu estou sozinho e depois os que me fazem companhia apontam-me uma arma à nuca, eu tenho frio mas depois fecham-me num forno que me doura a pele e me queima os pêlos.
E o raio nunca cai no mesmo sítio, ou melhor, até pode cair mas quais são as probabilidades? E a sorte toca a todos, ou até pode não tocar a todos mas… quais são as probabilidades?
E pedimos o amor para termos alguém a instalar câmaras ocultas para ver se andamos a comer a mulher da limpeza, e quem anda à chuva molha-se porque estava seco.
E a sorte… acima de tudo imploramos pela sorte de receber aquilo que pedimos para depois não gostarmos e exigirmos antes não ter recebido… para depois querermos de novo e esperarmos que nada tivesse acontecido porque estávamos melhor no início. Mas quando estamos no início sentimo-nos sempre à espera do que nunca vem… e se vem não era bem aquilo porque o génio não paga a luz e a lâmpada está sempre submersa na escuridão… e quais são as probabilidades? Quais as hipóteses de felicidade? E o raio não vem… rai’s parta a minha vida que é esperar o que quero e não preciso, e preciso de esperar mas não quero, e gosto de ti porque tu não, e quando tu gostares vou deixar eu de te querer. E quais são as probabilidades de nos querermos os dois ao mesmo tempo? Quais são as probabilidades do nosso abraço apertado não afrouxar? Quais são as probabilidades de nos amarmos à mesma hora, nos mesmos dias, a cada segundo, como um raio que fulmina uma árvore repetidamente e que, em vez de a destruir, a faz encher-se de frutos? E quais são as probabilidades de não nos mexermos um milímetro para que o trovão nos dê voz e a luz nos encha o espírito?
E quando os dias pequenos e escuros nos trouxerem as pessoas rasteiras e sombrias que nos apontam defeitos como quem come cerejas, desfazendo-nos os brincos que usávamos só por sedução, e quando a tempestade nebulosa e sem faísca nos entorpecer de tédio e olharmos um para o outro para vermos um monstro obeso e cariado que já nem reconhecemos… o que é que vamos fazer aí? É possível continuar?
Quais são as probabilidades… quando o beijo me souber a azedo e o teu corpo me parecer de gelo… e o teu sorriso for tão magoado como o do anjo a quem não deram as asas?
E nessa altura… nessa altura vamos ter vertigens e vai ser difícil, mesmo muito difícil, porque os beijos serão mais curtos e as palavras ditas no meio do temporal serão secas… e vou esperar que sejas outra e tu… que eu não seja. E vamos estar tão desencontrados como o abraço que não queremos dar, como os lábios que resvalam para a bochecha, como o sangue que o coração bombeia por engano para os olhos que estão vermelhos de chorar. E aí tudo nos vai parecer o fim… e vamos querer continuar mas quais são as probabilidades de nos amarmos à chuva e ao frio e ao vento?
Quais são as probabilidades? Diz-me… quais são as probabilidades de um raio nos fulminar agora, aos dois, perpetuando-nos como uma estátua que o não quis ser, como uma dor mais lancinante porque foi procurada, como uma lei mais injusta porque foi feita depois do crime.
E o raio inunda-nos o corpo e os sentidos, e a chuva passa, e a trovoada chega-nos num dia de Verão em que o céu sem nuvens se enche de luz e nos ilumina a pele, e a boca, e os cabelos que voam com a electricidade estática.
E todos diziam que não… e nós também o dizíamos. Quais eram as probabilidades?
Quais eram as probabilidades do raio fulminar os mesmos dois, duas vezes, no mesmo sítio… e nem quisemos… ou até quisemos no início, mas depois não, depois não. Mas quando havíamos desistido e não o queríamos mais chegou um trovão fora de tempo que nos deu a voz das palavras doces… como as cerejas que nos roubaram e que não chegámos a comer, mas cujo sabor vamos sentir num beijo que vai durar até ao fim da morte porque só a vida não chegava.

poema do livro "luto lento" de João Negreiros

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