quarta-feira, 15 de junho de 2011

sabedoria para pular, de João Negreiros




sabedoria para pular

diz-se que a Oriente se come arroz

e que os pretos têm ritmo

e os judeus são bons com dinheiro

e as mulheres é na cozinha

e os homens de pantufas

às crianças torce-se-lhes o pepino para comerem os legumes todos

e o cão é o melhor amigo          menos do gato          que é um interesseiro          que vê bem de noite

e os homossexuais usam cabedal e vão ao ginásio

e os motoqueiros também mas não vão ao ginásio          fazem pesos em casa

e os novos ricos são iguais aos ricos tirando o sotaque e as roupas coloridas

e os brasileiros vestem de branco e usam chapéu          menos os brasileiros que são pretos e cheiram cola nas esquinas

e temos que ser uns para os outros          mas primeiro para nós e para os nossos

e os nossos são aqueles que escolhermos ou aqueles que escolheram por nossos

e os carros japoneses são muito bons porque os japoneses sabem artes marciais

e se o carro não fica bom eles desatam ao pontapé e o carro tem tanto medo que fica bom        

e tem tanto medo que até ganha as corridas que passam na TV que também é feita pelos japoneses ao pontapé para depois levar uns biqueiros de um europeu que não sabe artes marciais e por isso destrói a TV

e os chineses são diferentes          são iguais aos japoneses mas diferentes          mais tristes por não terem máquinas fotográficas

e os turistas nunca sabem o caminho

e os da terra sabem sempre para onde vão

e os cavalos são elegantes menos quando cagam

e as pulgas são irritantes mesmo quando são na areia

e assim é bem mais fácil          porque a verdade está na voz das crianças          e por isso as crianças bem comportadas calam-se

e os ratos trazem as doenças          mesmo os que não trazem

e Deus é igual a um homem          tirando o carácter divino ou a falta de carácter divino

e os tímidos são dóceis

e os nobres têm sangue azul          sempre que não sangram

e as mulheres demoram muito tempo a arranjar-se          mesmo quando não se arranjam          porque as que há são feias          e as bonitas são más          só porque podem

e a nossa cabeça funciona assim          como as casas do jogo da glória que diz para avançarmos cinco casas sem ter que lançar os dados porque os dados estão sempre errados

e temos que ouvir os mais velhos          mesmo que sejam mudos
e a experiência de vida define-se pelo número de imbecilidades que dizemos e do ar caquéctico que apresentamos

e os bebés querem-se gordos

e as mulheres querem-se magras          por isso as mulheres para fazerem um verdadeiro e extraordinário percurso devem passar os anos de formação a fazer dieta para passar com graciosidade do recém-nascido com obesidade mórbida até à adolescente anoréctica

e os homens querem-se com cara de homem e a cheirar a cavalo          mas como os cavalos são elegantes melhor não          é melhor que o homem cheire a cavalo só quando o cavalo está a cagar

e os artistas são loucos         

e os loucos são artistas          mas às vezes trocam

e quem faz colecção de selos usa óculos e tem mais de sessenta anos          se tiver menos e vir muito bem põe farinha na cabeça e usa armações sem lentes

e os veteranos de guerra têm cicatrizes que fizeram com o canivete do pai só para dizer que estiveram na guerra

e os amigos são para as ocasiões          porque é nas ocasiões que vemos os amigos

e é nos maus momentos que sabemos dar o valor e por isso partilhamos os bons momentos com a escumalha

e é isto

a pêra é fina

o bigode é parolo

a barba é revolucionária

e o bigode grande e muito bem tratado é monárquico

e a caneta de tinta permanente permanece no escritório e nunca vai para a cozinha apontar as receitas

e a cozinheira é gorda e está sempre a prová-lo

os costureiros são gays mesmo os que não são

e os cães pequenos ladram muito          e os grandes mordem

e cão que ladra não morde          ou seja          o cão do ditado era pequeno

e é assim

ninguém tem mesmo que pensar          é só teleportar o pensamento para um atalho que nos leva a outro atalho que se esbate no primeiro e derrapa no terceiro e no fim resta-nos a interpretação pessoal          da ignorância da mediocridade          do preconceito          da ausência de sentido crítico          dos buracos negros do carácter

e todos somos imbecis porque a sabedoria popular o diz

e passa-se de gerações para gerações

e quando damos fé a nossa já passou

e a deles também e a dos outros está quase

e a vida são dois dias

e temos que ser uns para os outros

e cada um é como cada qual

e somos todos diferentes          mas não parece

Poema do livro "luto lento", de João Negreiros, à venda em livrarias e em https://www.buknet.pt/?op=pesquisa&pesquisa=jo%E3o+negreiros&t=2

5 comentários:

  1. Soberbo*
    Era bom que toda a gente percebesse isto, que somos todos iguais embora todos diferentes.

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  2. É fantástica a visão do mundo e da sociedade expressa neste poema! Muitos parabéns!

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  3. adorei, está muito bom!
    eu gostava de apresentar este poema na escola, mas tenho algumas dúvidas quanto à estrutura externa, pois não consigo perceber a pontuação, não conseguindo distinguir tercetos, quadras, quintilhas e etc... será que me pode ajudar? (:

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  4. Mariana, fico muito contente que queiras apresentar este poema na escola. É uma honra.
    Relativamente à estrutura externa do poema, este poema é de verso livre. A pontuação é feita através dos espaçamentos e das mudanças de parágrafo.
    Obrigado pelo comentário.
    Abraço,
    João Negreiros

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