o nadador
foi visto um burocrata morto por não saber nadar
a boiar de bruços com a cabeça enterrada na água
a exercitar as guelras do ar podre que lhe construiu as palavras sinceras com
[que enganou quem conheceu ao longe da janela do avião
e de longe acenou a todos os que conhecia levando na mão a mala
[que tinha as esperanças que todos tinham em si
bóia um ladrão morto e o estilo é pouco ortodoxo
não mexe braços nem pernas
não respira nem ergue a cabeça
não faz rotações de tronco
não se mexe nem um milímetro
foi já ultrapassado por todos os concorrentes
e a água vai ficando escura da tinta que vai na mala onde se escreveram
[os nomes dos que lhe confiaram as vidas
na pista sete bóia um burocrata rico que fugiu com a esperança
e ninguém se atreve a resgatá-lo
é que dá medo de olhar
dá medo de saber a expressão que levava quando percebeu que não ia ganhar
todos os nadadores já saíram da água
todos os nadadores já secaram o cabelo
todos os nadadores já receberam as medalhas
todos os nadadores já vestiram os fatinhos-de-treino
todos os nadadores já choraram a bandeira
e um chorou ranho também com o hino
ele continua lá
a piscina vai fechar
as luzes apagaram-se
e o da pista sete não tem direito a medalha
nem pode ir às olimpíadas porque já ninguém confia nele
nem sequer para conseguir os mínimos
a pista sete está a transbordar com as palavras que lhe disseram os amigos
[que ele iludiu para depois desiludir
e foi o dono de um molhe delas
um dos donos dos molhos de palavras que lhe fez a folha
que lhe levou o ar emprestado para compensar o papel
foi um deles que lhe deu as mais exigentes aulas de natação
aquelas em que é impossível levantar a cabeça e em que temos que nadar
[sempre submersos até bater com a cabeça desesperada na parede que sabe a [cloro
o burocrata bóia morto e quem o fez perder a prova foi um nome na pasta
há um nome a vermelho na pasta que está a esbater-se no mesmíssimo
[momento da culpa
o melhor amigo matou-o
o que lhe fez mais festas
o que lhe gabou mais as notas dos filhos
o que mais lhe respeitou a esposa
o que mais brindes lhe fez em delicados reveillons
o melhor amigo matou-o
o melhor amigo matou-o
foi o único que não aguentou perdê-lo
percebê-lo
conhecê-lo
era o único que não sabia
era o único que estava quase a meter os papéis para se promover a irmão
o melhor amigo matou-o porque a maior tristeza só nos pode ser dada por
[quem amamos mais e mais e mais neste infinito que termina [desafiando a lógica que nos disseram os livros e os filmes de domingo à tarde [que vemos amparando meninos
o burocrata bóia morto e está na boca do mundo defunto porque levou para
[longe numa pasta as boas acções que se trocam agora por brinquedos [que só dão aos filhos dos pobres
o burocrata bóia morto e afoga o melhor dos amigos
in a verdade dói e pode estar errada, de João Negreiros
Dá um certo alento e satisfação - é como que uma "lufada de ar fresco"! - entrar nos autocarros da TUB, onde, por vezes, os passageiros estão como sardinhas em lata e poder ler, interiorizar algumas poesias suas... :)
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