sábado, 6 de fevereiro de 2010

grandes poemas para viagens pequenas

Nos Transportes Urbanos de Braga, este mês, pode-se ler:


o nadador


foi visto um burocrata morto por não saber nadar

a boiar de bruços com a cabeça enterrada na água

a exercitar as guelras do ar podre que lhe construiu as palavras sinceras com

[que enganou quem conheceu ao longe          da janela do avião

e          de longe          acenou a todos os que conhecia levando na mão a mala

[que tinha as esperanças que todos tinham em si

bóia um ladrão morto e o estilo é pouco ortodoxo

não mexe braços nem pernas

não respira nem ergue a cabeça

não faz rotações de tronco

não se mexe nem um milímetro

foi já ultrapassado por todos os concorrentes

e a água vai ficando escura da tinta que vai na mala          onde se escreveram

[os nomes dos que lhe confiaram as vidas

na pista sete bóia um burocrata rico que fugiu com a esperança

e ninguém se atreve a resgatá-lo

é que dá medo de olhar

dá medo de saber a expressão que levava quando percebeu que não ia ganhar

todos os nadadores já saíram da água

todos os nadadores já secaram o cabelo

todos os nadadores já receberam as medalhas

todos os nadadores já vestiram os fatinhos-de-treino

todos os nadadores já choraram a bandeira

e um chorou ranho também com o hino

ele continua lá

a piscina vai fechar

as luzes apagaram-se

e o da pista sete não tem direito a medalha

nem pode ir às olimpíadas porque já ninguém confia nele

nem sequer para conseguir os mínimos

a pista sete está a transbordar com as palavras que lhe disseram os amigos

[que ele iludiu para depois desiludir

e foi o dono de um molhe delas

um dos donos dos molhos de palavras que lhe fez a folha

que lhe levou o ar emprestado para compensar o papel

foi um deles que lhe deu as mais exigentes aulas de natação

aquelas em que é impossível levantar a cabeça e em que temos que nadar

[sempre submersos até bater com a cabeça desesperada na parede que sabe a [cloro

o burocrata bóia morto e quem o fez perder a prova foi um nome na pasta

há um nome a vermelho na pasta que está a esbater-se no mesmíssimo

[momento da culpa

o melhor amigo matou-o

o que lhe fez mais festas

o que lhe gabou mais as notas dos filhos

o que mais lhe respeitou a esposa

o que mais brindes lhe fez em delicados reveillons

o melhor amigo matou-o

o melhor amigo matou-o

foi o único que não aguentou perdê-lo

percebê-lo

conhecê-lo

era o único que não sabia

era o único que estava quase a meter os papéis para se promover a irmão

o melhor amigo matou-o porque a maior tristeza só nos pode ser dada por

[quem amamos mais          e mais          e mais          neste infinito que termina [desafiando a lógica que nos disseram os livros e os filmes de domingo à tarde [que vemos amparando meninos

o burocrata bóia morto e está na boca do mundo defunto porque levou para

[longe          numa pasta          as boas acções que se trocam agora por brinquedos [que só dão aos filhos dos pobres

o burocrata bóia morto e afoga o melhor dos amigos

in a verdade dói e pode estar errada, de João Negreiros

2 comentários:

  1. Dá um certo alento e satisfação - é como que uma "lufada de ar fresco"! - entrar nos autocarros da TUB, onde, por vezes, os passageiros estão como sardinhas em lata e poder ler, interiorizar algumas poesias suas... :)

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