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As coisas pequenas
Há dias em que as coisas pequenas se te atravessam no caminho e, por serem pequenas, tu achas que, mais cedo ou mais tarde, elas vão acabar por desaparecer. Mas as coisas pequenas são as únicas que nunca desaparecem pela particular razão de serem quase invisíveis.
Não percebes, pois não? Eu explico: tens uma chave, e tens uma porta, e a compor a porta tens uma casa que tem um recheio... sem creme, mas muito doce.
Tens uma chave e uma porta, e à volta uma casa, e queres entrar mas a chave, que é pequena, está torta e tu não dás conta, e colocas na ranhura, e rodas a chave mas metade dela parte-se lá dentro do recheio, e agora metade da chave está lá dentro, a impedir que tu entres.
Ainda não percebeste, pois não? Eu explico: tens todo o carinho acumulado dentro do teu corpo e já escolheste exactamente a pessoa a quem o queres dar… e essa pessoa existe mas depois, lá está, as pequenas coisas, a pessoa existe mas está dentro de casa e tu continuas fora, e agora vais ter de substituir o canhão… mas é feriado e não há quem te faça o serviço, e perdes a paciência, e arrombas a porta mas ela, que estava junto à maçaneta, a espreitar a ver se te via fica debaixo, e quanto mais procuras mais pisas, e quando dás por ela já estragaste tudo, e ela parte com a rapidez de um estalo que te aquece a cara que logo de seguida é refrescada pelo relento de estar dentro de casa com a porta pelo chão, e queres-te vingar, e vais buscar o martelo, e espatifas o canhão e a chave de fora, e a chave de dentro, e a porta, e partes tudo, e arremessas o recheio pelas janelas deixando que os gulosos te levem o doce. E recriminas-te muito mas a culpa não é tua, foi um pequeno duende que te entortou a chave… que pediu que ela espreitasse. Um duende pagão que inventou um feriado religioso para tramar um agnóstico e tu, que não acreditas em nada a não ser na tua capacidade de atingir objectivos, estás constantemente fodido porque pensas que as grandes coisas que fazes têm algum tipo de correlação directa com o que vai acontecer… mas acredita que as pequeninas coisas são tudo, são elas que fazem girar o mundo.
E a entrevista de emprego vai sempre ficar para outro por causa da caneta que estourou no bolso da camisa branca, ou dos fiapos de caldo verde que se penduram nos teus dentes, ou do corante do gelado que te deu à língua um tom esverdeado quando dizias palavras sábias. E vais sempre ficar preso no elevador porque faltou a luz… porque não vais chegar a tempo… porque era importante… e não podes fazer nada. E vais sempre perder o autocarro, apesar de muito grande e de dois andares, porque o duende apoia os grevistas… e porque o mecânico amigo te mudou o óleo do carro para um óleo da fritura das batatas que ficaram negras daquele jantar que correu mal.
E são sempre as pequenas coisas, tão pequenas que são ainda mais invisíveis que as coisas que tu não vês. Porque a fé tu não vês mas, se te esforçares, é possível. O amor também não vês mas, se te esforçares, é possível. O ódio… bem… o ódio não serve de exemplo, vê-se demasiado bem, tão bem como as letras garrafais de um escândalo de prostituição que está na primeira página… porque o senhor ministro deixou a carteira em casa e não tinha nada para pôr na cómoda da menina
e a menina, dona da cómoda, ficou tão incomodada que foi à porta dos jornais, a que estava entreaberta porque a senhora da limpeza a deixou assim para arejar.
E são sempre as pequenas coisas, aquelas que tu não vês, as que tu nem sequer conheces.
E o cansaço pode-te fazer cair devagar. E a tristeza pode-te fazer cair devagar. Mas os cordões desapertados fazem-te cair depressa.
E é humanamente impossível prever porque o doente do duende fá-lo com magia e a magia não se vê, a não ser na televisão ou pagando bilhete e, como ninguém aprende nada com o que vê na televisão e só queremos bilhetes se forem oferecidos, nunca vemos a magia.
E são sempre as coisas pequenas. E às vezes há partenaires gordas que já andam nisto há muitos anos que nos avisam antes de cair, mas nós… pronto, achamos que só acontece aos outros como nos lugares comuns… por isso o melhor é não dar grande atenção a seja o que for. O que tem que acontecer já aconteceu e o que nós queremos que aconteça vai acontecer, mas noutra altura, noutro sítio e, provavelmente, a outra pessoa.
in luto lento, de João Negreiros
As coisas pequenas são, porventura, as mais importantes. Essas que se atravessam no nosso caminho e às quais não damos grande importância mas que, bem vistas as coisas, se lá estão/ se existem, isso tem alguma razão de ser.
ResponderEliminarGostei do texto... Do ritmo, da sabedoria e da pertinência das palavras!
Gostei da essência do texto, que é a reflecção sobre a vida, a fé, o amor, e o acaso...
ResponderEliminarLeio amiúde as suas coisas, pequenas ou grandes e, creia, está imbuído do génio de dizer (escrever) bem esta época, esta sociedade, esta existência comum...
Olá,
ResponderEliminarGostaria de saber se algum dos livros tem publicação no Brasil.
Obrigada.
As coisas pequenas e Ontem estive no inferno são ótimos! Parabéns pelo trabalho João! És inspiração pra mim!
ResponderEliminarTens mais um fã no Brasil!
Abraço.
Olá João!
ResponderEliminarGostaria de te dar os parabéns pela tua sabedoria e como tão bem transmites
as tuas mensagens… não, não são só palavras bonitas e bem combinadas, não e não,
mas não mesmo… são palavras de alguém que sabe escrever com alma…
Gostaria de publicar este teu texto no meu blogue que está há muito abandonado por mim,
porque só lá vou quando a minha alma grita … grita para ser ouvida, ouvida especialmente por mim…
pois é, eu continuo a viver intensamente "coisas pequenas" ou as pequenas grandes coisas, sim é por causa delas que sobrevivo e canto as palavras, escrevo-as como Mozart escreveu o último andamento do "Requiem em Ré Menor", a "Lacrimosa", que diz assim:
ResponderEliminar"Lacrimosa dia de lágrimas, aquele em que o homem pecador renasce de sua cinza para ser julgado. (...) ."
Bem-hajas João Negreiros
Maria Augusta Araújo
"São nos pequenos frascos que existem os grandes perfumes". São em nossas pequenas atitudes diárias que se faz grandes mudanças. Compreendo o que chama de "coisas pequenas" e concordo, podem tomar proporções poderosas. Mas acredito ser preciso que não esqueçamos que "pequenas coisas" podem fazer toda a diferença. Parabéns pelo espaço. Abs, Clarissa
ResponderEliminarO efeito borboleta retratado no duende e na magia das "pequenas coisas" está brilhante. Adorei
ResponderEliminarO efeito borboleta retratado no duende e na magia das "pequenas coisas" está brilhante! Adorei
ResponderEliminarJoão,
ResponderEliminarParabéns pelos seus trabalhos. Estou desenvolvendo um projeto literário e se você tiver interesse em participar peço-lhe que me envie um email para que eu lhe envie o convite. soiracelestino@hotmail.com. Obrigada.
Estou absolutamente FASCINADA com o Joao Negreiros que descobri há muito pouco tempo!
ResponderEliminarParabens
SINAIS DE INQUIETUDE
ResponderEliminarNesta noite nua
Frio de saudade tua
Vem lua adormecendo
Os meus trópegos passos
O gesto único do abraço
Onde morto cansaço
Se viveu mais um dia.
Hoje fiel de tudo
Refiz o meu mundo, profundo
Em lagos de felicidade plena
Tamanha será a nossa singularidade
Porque esta é pequena.
Acordei e demorei
A lembrar-me do sonho passado
Neste estio de vida contínua
Caminho sem destino
Num porto onde todos dias parto
Para universalidade de tudo.
Alfredo Quintas
http://criticaseprosas.blogspot.com
Parabéns mais uma vez poeta, pelo belo texto.As coisa pequenas sempre são lembradas.Elas marcam de quarquer forma algo especial,deixando marcas positivas ou negativas.
ResponderEliminarAS pequenas... Grandes coisas!
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