quarta-feira, 4 de novembro de 2015




"tu messias mais"

se ninguém te quiser ouvir grita
escala um arranha-céus e diz tudo
até que as entranhas se esvaiam em acordeões
até que sejas impossível de ignorar
e se te baterem bate a mais portas
e se te baterem mais usa a testa como aríete e entra-lhes nos pensamentos
tu sabes que tens razão
tu tens sempre razão
tu vais salvar toda a gente de si própria
tu sabes o segredo que lhes vai mudar as vidas
tu és o sopro que lhes falta quando assobiam
o som da trombeta
o guizo do chapéu
o rasgo do papel
o mago da magia
o marco do correio
o pico do cume
a água do dromedário
tu vieste para ajudar
tu só queres ajudar
então porque não te deixam?
porque não te sopram carinho ao ouvido e te chamam nomes feios que tu sabes não serem da tua família          nem da afastada
a sociedade também foi feita para ti
um bocadinho foi
um buraquinho foi
porque não te deixam entrar lá?
porque não te deixam estar lá?
querem-te à chuva e ao frio
sem amigos
sem calor
sem pão
sem sal
não te dão nem um naco da tua própria carne
nem a luz do teu quarto
nem o silêncio da tua mente
e tu aceitas?
e tu ficas-te?
e tu não protestas?
seu banana
seu falhado
seu funcionário sem sindicato
sua mulherzinha que nunca votou
sua criancinha que limpa o prato
seu homossexual não assumido
seu cão sem pulgas
seu cabrão sem cornos
seu tronco sem pau
seu pau mandado
seu arado sem terra
seu dinossauro radioactivo sem cidade japonesa
seu lamparina sem petróleo que foi inundar uma gaivota
seu cabeça sem capacho
seu diamante
seu bruto
seu papa-açorda
seu caramelo
seu lambe-cus
seu
seu
seu
seu és tu
seu és tu           
ouviste?
seu é contigo
seu é para ti
acorda
já é noite
já foi dia
amanhã vai ser tudo isso outra vez e tu estás ao relento
não tens onde ficar
não tens lugar na terra e ninguém to vai dar se não esgravatares
procura
pede
come
ataca
implora
arrasta-te
resvala
escorrega
assusta-os
ignora-os
tu sabes que tens razão
e a tua razão é respirar
se respiras tens direito à vida
se tens direito à vida tens direito a chorar
se tens direito a chorar tens direito a voz
se tens direito a voz tens direito a que te ouçam
se tens direito a que te ouçam tens direito a dizer algo que lhes mude as vidas
se tens direito a dizer algo que lhes mude as vidas tens direito a mudar também a tua
não peças respeito
nasce respeitado
não implores por dignidade
apregoa a dignificação do Homem
não mendigues comida
acaba com a fome
não protejas os teus filhos
protege todos os filhos
não procures uma religião
faz o que um Deus bom faria
não ouças tudo o que te dizem
ouve todos os que falam
tens direito ao teu canto
e o teu canto é o de mudar tudo
tu podes mudar tudo
tu deves mudar tudo
tu sabes mudar tudo
repara nas pessoas e muda-as para melhor se elas quiserem
aproveita para ires melhorando também
dá-te como se fosses de borla
não peças nada em troca mas dá com um sorriso mais rasgado a quem te der um beijo no fim
não tenhas medo que te interpretem mal
aliás          não tenhas medo que te interpretem
aliás          não tenhas medo
guarda o melhor para os outros e o pior para ti
mas não sejas cruel contigo que és o único que tens
tens que ter noção do teu papel
e o teu papel é duro como se embrulhasse pregos ou cacos que não queremos nas mãos do senhor da recolha nem nos dentes do gato vadio
o que tu vais fazer agora porque é o único tempo que te pertence é mudar
mudar até que nada fique igual
até que esteja mesmo do agrado de todos
mas se         por acaso         no meio do teu percurso de conflito e mudança
no meio da tua jornada de luta pelo bem encontrares algo de profundamente belo
não lhe mexas
não lhe toques
pega numa cadeira de praia         monta-a          e senta-te calmamente a apreciar

Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros

segunda-feira, 2 de novembro de 2015



"a beleza"

a beleza não me faz bem
mas faz-me falta
a beleza não me faz bem
mas faz-me
a beleza não faz
a beleza não faz bem
a beleza falta-me
a beleza dizima criaturas
dá-lhes a imortalidade de quem não sabe que está a morrer
a beleza mostra-nos o que quase fomos
a beleza ensina-nos a cartilha do fracasso
a beleza mostra-nos o melhor lado para nos deixar com o outro a seguir
a beleza não é uma pessoa
a beleza é todas
a beleza não dá nada
a beleza só oferece
a beleza quer-se aos poucos
a beleza ofusca
a beleza está nas reentrâncias de todos os corpos
a beleza está em algumas canções
a beleza está nos ouvidos das canções
a beleza nunca se ri
a beleza é imparcial
a beleza faz-nos chorar mais
a beleza não é para todos
a beleza é só para alguns
a beleza é democrática
a beleza não é coerente
a beleza é relativa
a beleza ou está ou não está
a beleza morre a cada segundo
a beleza nasce sempre
a beleza faz desenhos no vidro embaciado
a beleza dá-se bem com toda a gente
a beleza não quer nada com algumas pessoas
a beleza está em todo o lado
a beleza está a todo o momento
a beleza existe
a beleza
a beleza
a beleza é deitares-te comigo no preciso momento em que eu existo para podermos olhar-nos durante o fim do resto dos dias
a beleza faz-me compreender a efemeridade e a falta de inteligência do sofrimento
a beleza é simples
a beleza usa os invólucros como pessoas
a beleza permanece no momento em que vai e vem
a beleza é a procura
a beleza é só a procura
a beleza só é a procura
a beleza a sós procuras
a beleza gosta do vento
a beleza não usa cabelo
a beleza foi feita por quem?
a beleza foi descoberta
a beleza impede-me de sentir as mãos no Inverno
não isso é o frio
a beleza usa-me
a beleza usa-me e eu gosto
a beleza usa-me e eu não gosto
a beleza queria que o mundo fosse de determinada maneira mas o mundo teima em ser de determinada maneira
a beleza é a nossa mãe
a beleza é as nossas mães
a beleza usa camisolas de gola alta
a beleza não está na moda
a beleza não está decorada
a beleza?
ninguém a sabe
a beleza ofusca
suga
serve
santa
sina
sede
some
segue
a beleza é o equívoco
a beleza é a maneira que arranjámos de dizer que vale a pena lavar os dentes
arranjar as unhas
tomar banho
tratar dos filhos
passar fome
passar a ferro
malhar o ferro
correr com bolhas
lavrar com calos fora dos sulcos
viver dois dias para além do tempo
ir para a cama com o patrão
andar de eléctrico
saltar de um penhasco
seguir um líder
fazer um brinde
criar o gado
rasgar o céu
limpar o soalho
dar um tempo
trabalhar para o Estado
seguir um ideal
fazer um jogo
dar lá um salto
ser funcionário das finanças
arremessar um calhau para longe
puxar os cabelos a um pulha
comer a sopa
ir por um atalho
conhecer o príncipe
ir àquele concerto
calhar bem
sentir o cheiro do outro
calhar mal
casar por dinheiro
merecer a prenda
levar a melhor
subir na vida
lavar escadas
o toiro pelos cornos
a pata na poça
o brilho da manhã
e começar de novo
a beleza é começar de novo
a beleza é começar de novo
a beleza é começar de novo

Poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros