sexta-feira, 21 de outubro de 2011

o nadador




o nadador


foi visto um burocrata morto por não saber nada
a boiar de bruços com a cabeça enterrada na água
a exercitar as guelras do ar podre que lhe construiu as palavras sinceras com
[que enganou quem conheceu ao longe          da janela do avião
e          de longe          acenou a todos os que conhecia levando na mão a mala
[que tinha as esperanças que todos tinham em si
bóia um ladrão morto e o estilo é pouco ortodoxo
não mexe braços nem pernas
não respira nem ergue a cabeça
não faz rotações de tronco
não se mexe nem um milímetro
foi já ultrapassado por todos os concorrentes
e a água vai ficando escura da tinta que vai na mala          onde se escreveram
[os nomes dos que lhe confiaram as vidas
na pista sete bóia um burocrata rico que fugiu com a esperança
e ninguém se atreve a resgatá-lo
é que dá medo de olhar
dá medo de saber a expressão que levava quando percebeu que não ia ganhar
todos os nadadores já saíram da água
todos os nadadores já secaram o cabelo
todos os nadadores já receberam as medalhas
todos os nadadores já vestiram os fatinhos-de-treino
todos os nadadores já choraram a bandeira
e um chorou ranho também com o hino
ele continua lá
a piscina vai fechar
as luzes apagaram-se
e o da pista sete não tem direito a medalha
nem pode ir às olimpíadas porque já ninguém confia nele
nem sequer para conseguir os mínimos
a pista sete está a transbordar com as palavras que lhe disseram os amigos
[que ele iludiu para depois desiludir
e foi o dono de um molhe delas
um dos donos dos molhos de palavras que lhe fez a folha
que lhe levou o ar emprestado para compensar o papel
foi um deles que lhe deu as mais exigentes aulas de natação
aquelas em que é impossível levantar a cabeça e em que temos que nadar
[sempre submersos até bater com a cabeça desesperada na parede que sabe a cloro

o burocrata bóia morto e quem o fez perder a prova foi um nome na pasta
há um nome a vermelho na pasta que está a esbater-se no mesmíssimo momento 
                                                                                                                     [da culpa

o melhor amigo matou-o
o que lhe fez mais festas
o que lhe gabou mais as notas dos filhos
o que mais lhe respeitou a esposa
o que mais brindes lhe fez em delicados reveillons
o melhor amigo matou-o
o melhor amigo matou-o
foi o único que não aguentou perdê-lo
percebê-lo
conhecê-lo
era o único que não sabia
era o único que estava quase a meter os papéis para se promover a irmão
o melhor amigo matou-o porque a maior tristeza só nos pode ser dada por
[quem amamos mais          e mais          e mais          neste infinito que termina desafiando 
[a lógica que nos disseram os livros e os filmes de domingo à tarde que vemos amparando [meninos

o burocrata bóia morto e está na boca do mundo defunto porque levou para longe          
                                             [numa pasta          as boas acções que se trocam agora por                                                                           [brinquedos que só dão aos filhos dos pobres

o burocrata bóia morto e afoga o melhor dos amigos


poema do livro "a verdade dói e pode estar errada" de João Negreiros,
à venda em livrarias e em http://www.saidadeemergencia.com/