sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Aprende a falhar


Falha um sonho e acorda de vez.
Falha um objectivo e corre com o cansaço.
Falha por muito e fica mais perto.
Falha por pouco para ficares quase onde queres.
Falha muito como faz quem percebe que ser alguma coisa passa por quase ser.
Falha a concretização como quem dá valor ao que constrói.
Falha um compromisso e encontra outra pessoa.
Falha o que está longe e cresce como quem se estica.
Falha como conseguem os outros.
Falha e saberás o valor todo quando deixares de o fazer.
Falha e diverte-te à distância.
Falha, falha, falha, falha.
Falha como quem aprende que tudo no Mundo precisou de tentativas para existir.

Texto d'"O Manual da Felicidade" de João Negreiros

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Jesus além revisitado

Belém azeda como açúcar sem cana
os reis magros estacaram frente à cabana
a estrela perdeu-os e confundiu-se com a Lua
o menino sem presentes mama a verdade nua

e prostrada nas palhinhas
está a esperança que tu tinhas
prostrada nas palhinhas
estão as tuas e as minhas

luziu tanto até ser dia
surge à noite a crença clara
faz-se gente em palha fria
e a esperança ninguém ampara

este Natal não tem ouro
o incenso paira no estrume
à vaca arrancaram o couro
e a Senhora deu luz sem lume

a faca no ventre abriu outro gume

poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros

domingo, 21 de dezembro de 2014

a sagrada família

subi a uma rua mais alta de onde não tinha pé
e conheci os mais desconhecidos
abracei-os como irmãos
e eles fizeram de conta que me conheceram
foi a forma que arranjei de conhecer a minha família

poema do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Bom trabalho


Bom trabalho

Eu acho que devo ser fascista… ou então acho que sou neo-liberal… ou liberalista… ou essas coisas que dizem os comentadores políticos antes que eu mude para o programa de renovações de casas… que eu estou tão cansada que não tenho pachorra para pensar nisso. Eu faço o que me mandam e não penso.
 No outro dia dei quatro horas a mais à empresa. Não me pagaram horas extraordinárias, a verdade é que não foram extraordinárias, se calhar foi por isso que não pagaram.
 Um amigo comunista disse que eu era fascista e por isso comecei a dizer que devo ser fascista. Depois até fui à Wikipédia para ver o que era o fascista. Apareceu o Hitler e não percebi nada. Depois ele lá explicou melhor, disse que eu apoiava o fascista e que o fascista era o meu patrão e que eu não podia ficar 4 horas a mais.
O mais estúpido é que nem sequer me pediram. Falaram para mim meio torto e eu lá me lembrei de um professor ou do meu pai num dia mau e lá fui ficando até ser 4 horas demais.
Quando cheguei a casa não tinha jantado. Tinha comido 3 panikes no bufete e estava mal-disposta. Não sei se os fascistas ou se os neo-liberais comem panikes mas se vir um digo-lhe que não coma dos de creme de ovos, deu-me uma volta à barriga.
Deitei-me na cama sem trocar de roupa. Ainda liguei a televisão e dei de comer à cadela mas do resto já nem me lembro.
Naquele dia trabalhei 12 horas, dormi 8, 4 foram para os transportes.
Não aguento mais o liberalismo e o fascismo e essas merdas.
Eu preciso de dormir, comer, telefonar à minha mãe, dar uma volta com a cadela e guardar tempo para quando tiver namorado.
Se os comunistas dormem mais e comem melhor, quero ser comunista como o meu amigo.
 Eu não percebo nada de política e às vezes, quando me dão indicações na estrada, confundo a esquerda com a direita, mas preciso de dormir, de comer, de ter tempo para mim, de ter tempo para os meus, de ter horas para sair e de ter quem me pague o que trabalhar a mais.
Da próxima vez que o meu patrão, que eu não conheço porque é uma multinacional, me pedir para ficar mais tempo a dar dinheiro a quem já tem demais digo-lhe assim:
- Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá, rega-me as plantas, liga à minha mãe, depois ao meu pai. Espero que encontres o regador, espero que a minha mãe não se assuste nem chame a polícia, espero que o meu pai não te assuste quando for lá partir-te os cornos por invadires a minha casa. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Não te esqueças de passear a cadela. Não te esqueças de pôr o lixo lá fora. Não te esqueças de fazer o jantar. Espero que a cadela não te estranhe e não te desfaça, é uma labrador preta e grande e pode desfazer-te se achar que não és exactamente como eu. Espero que o lixo não te suje as mãos e que a água da lata de cogumelos não se verta nas tuas calças. Espero que te saiba bem o meu jantar e que encontres à primeira as panelas, os copos e os pratos. Pega, aqui tens a chave de minha casa. Vai lá e vive por mim que isto aqui não é vida. Isto aqui não é vida.
O patrão olha para mim estupefacto e eu continuo:
       - Pronto, deixa estar, tu não ias querer a minha vida. Não vale a pena incomodares-te.
Levo a chave de minha casa e o trabalho que não fiz hoje fica aqui para fazer amanhã ou depois.
Se tens pressa vai adiantando o serviço durante a noite que eu amanhã cedo trago uma pessoa nova, sã e feliz para te ajudar.
Bom trabalho.

Poema do livro "O Manual da Felicidade" de João Negreiros

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Excerto de espectáculo


Excerto do espectáculo de apresentação do livro "o acaso é um milagre" de João Negreiros
Matosinhos, 28 de Novembro

Música: "as pessoas que quero p'ra mim"
Letra e Voz: João Negreiros
Guitarra: Benjamim Vaz

Co-produção: Bolor Teatro e Teatro Universitário do Minho
Apoios: Instituto Português do Desporto e da Juventude; Universidade do Minho; Centro de Pesquisa e Interacção Cultural