sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"a verdade dói e pode estar errada" - espectáculo de poesia


Neste espectáculo, João Negreiros interpreta alguns dos poemas do seu mais recente livro de poesia “a verdade dói e pode estar errada”, emprestando-lhes a sua voz, o seu corpo e todas as emoções e estados de espírito que estes são capazes de conter. As interpretações são tão inigualavelmente viscerais, inesperadas e apaixonantes que o resultado tem conquistado o coração de quem assiste numa alienação que é saudável porque abre portas para o pensamento.

26 de Novembro | 21h30 | Pampilhosa da Serra
entrada livre

domingo, 14 de novembro de 2010

Tempo morto



Poema do livro "luto lento" à venda nas livrarias e em https://www.buknet.pt/?op=pesquisa&pesquisa=jo%E3o+negreiros&t=2

Tempo morto

Às vezes tenho a impressão de que os sítios de onde venho não existem. Ou melhor, existem quando lá estou mas, mal saio, tenho a sensação de eles já não estarem lá só porque eu não estou lá. E ando a praticar toda a minha rapidez para ver se consigo apanhar o espaço desprevenido, mas o espaço é muito atento. O tempo não, o tempo, às vezes, engana-se e anda mais devagar… que já tenho reparado, mas o espaço é mesmo inteligente. No outro dia fui da sala à cozinha e, quando parecia que estava completamente decidido a ficar pela cozinha, corri da forma mais inadvertida e espontânea que consegui de novo para a sala e, naquele momento, tive… juro que tive quase a sensação de que a mesa e as cadeiras ainda não estavam completamente refeitas do choque, não estavam completamente materializadas. E então fui até à porta que estava lá e gritei para as pessoas que não estavam lá… para mim… para virem ver a minha… julgo que… sensação de desmaterialização espontânea da minha sala-de-estar. Mas a única pessoa que consegui cativar para a minha jornada de luta contra o espaço foi o meu vizinho que estava bêbado e em roupa interior. E então eu e o meu vizinho, que se chama Joaquim e que não tinha nada para fazer naquela tarde a não ser estar bêbado e de roupa interior, passámos três horas a tentar apanhar o espaço desprevenido, mas ele não deixou. E nunca mais jurei que tive aquela sensação, mas o Joaquim teve-a, a sensação, disse que quando chegava aos sítios tudo estava branco… e que quando olhava para trás, de repente, o sítio de onde vinha tinha ido para o espaço porque o espaço não teve tempo... porque o tempo é incompetente e, às vezes, anda devagar e o Joaquim, por estar constantemente bêbado, adquiriu super-poderes e consegue ver sempre o que não está lá. Vou fazer como o Joaquim e afogar-me no fundo de uma garrafa de conhaque, como aquele barco que o meu avô guardava na biblioteca que se perdeu com a inundação. E bebo, e trago, e mais outro trago comigo para me ajudar, e cambaleio, e tropeço, e entorpeço mas o espaço está sempre lá, o cabrão está sempre lá e o tempo está feito com ele, abranda-me o relógio que tenho na cabeça para que eu não veja que isto é uma ilusão. É uma sensação de julgo que eterna e eu tento não julgar mas julgo muito… que acho que tenho a sensação que alguma coisa aqui não está bem… que este mundo tem alguma coisa por trás a mexer os cordelinhos, a meter uma cunhazita, a orquestrar-me a banda sonora das enxaquecas.

E eu acho que estão todos feitos com o gajo atrás do espaço e do tempo, estão todos feitos com ele… menos o Joaquim que é meu amigo. E só é meu amigo porque está bêbado e de roupa interior, quando estiver sóbrio nem os bons dias me vai dar porque os meus dias são maus. E tenho a certeza que podia contar isto a todos os milhões e milhões de pessoas que não existem (porque eu não as conheço) que elas não acreditariam em mim (porque não me conhecem). Logo, não existo apesar de me verem se eu estiver lá. E lá está, é infalível, este plano é absolutamente eficaz porque as pessoas nunca vão estar onde não estão e por isso o não estar desaparece.
E o impostor do espaço, irmão do tempo que corre como quem soletra, vai dominar-nos sempre, vai ter-nos sempre nas suas mãos que vão estar sempre atrás das costas, a fazer figas para nós não vermos.
E eu não tenho tempo porque o cabrão para mim andou depressa demais, foi a maneira que arranjou de se vingar. E não tenho espaço porque o espaço levou a mal eu dizer estas coisas e escorraçou-me para um sítio que não existe. E eu agora tenho provas mas no sítio que não existe não há ninguém para me ouvir. E eu podia esperar mas lá também não há tempo. E não tenho corpo, nem alma, nem nada… não, nada tenho, tenho nada e tenho-me a mim… e vocês podem achar que é pouco mas, para mim, chega para vencer, basta-me nada e eu, eu e mais nada… e é tudo.
in luto lento, de João Negreiros

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sereia se quiseres


 
Para adquirir o livro (portes gratuitos) - http://www.saidadeemergencia.com/index.php?page=Books.BookView&book_id=535
 
Sereia se quiseres
Anda depressa dormir que eu prometo que vou fingir que não adormeço. Entras-me a meio do sonho como a sereia que fez do início das escamas a cintura… para se fazer mais fina, mais estreita, mais estreito que sou eu… que até cabo em ti com o mar à volta… como um mau português que se afoga na salitre das tuas vogais parasitas que nunca me soam a mais.
E tenho a mania que te amo só porque não conheço ninguém melhor… ou melhor… até conheço, ou conheceria se tivesse a imaginação mais fértil… para te imaginar como a irmã feia e burra da mulher mais que perfeita que não existiu no passado. Mas como não me sai da cabeça a imagem… nem com shampoo… e, como a mulher mais que perfeita nunca vai dar à costa, tenho de me contentar contigo que és só a perfeição.
És tu, és só tu.
E tu:
- Serei… sereia… serei a … se tu quiseres.
E eu… à falta de melhor… quero.

in a "verdade dói e pode estar errada", de João Negreiros (Camões & Companhia, 2010)